Por Álvaro André Zeini Cruz
(contém spoilers)
Damages (idem, EUA, 2008), série criada por Todd A. Kessler, Glenn Kessler e Daniel Zelman, partia das coxias de um renomado escritório de advocacia em NY para desvendar uma das mais antigas instituições da história da humanidade (e que, ironicamente, tem como representação histórica uma estátua com os olhos vendados) – a justiça, que no caso do drama estrelado por Glenn Close e Rose Byrne era, além de cega, submersa em corrupção e sangue.
Bloodline (idem, EUA, 2015), nova produção do trio, desta vez sob o selo Netflix, traz alguns resquícios do expediente anterior dos autores: o tom investigativo se mantém – bem como a narrativa que antecipa flashes de um crime –, e o trânsito é, novamente, pelos bastidores, porém, de uma instituição ainda mais remota do que a visitada outrora – desta vez, a entidade e o estatuto em xeque é o familiar.
Proprietários de um hotel litorâneo na Flórida, os Rayburns veem os galhos de sua aparentemente bem enraizada árvore genealógica estremecerem quando Danny (Ben Mendelsohn, indicado ao Emmy de “Melhor ator coadjuvante” pelo papel), o filho pródigo-problemático, retorna a um lar que, veremos, não tem nada de doce. Danny é o incidente incitante corporificado e sua simples presença é suficiente para que antigas feridas – ignoradas, mas não cicatrizadas, – voltem a jorrar sangue com tamanha força que se torna difícil enxergar os talhos para estancá-los.
Essa influência maléfica, entretanto, não é uma marca de nascença, mas um processo de conversão – de soro, Danny fora transformado em veneno por conta de uma fatalidade. Seu papel – o do mais velho e protetor, – passa a ser suprido pelo segundo da linhagem, John (Kyle Chandler, também indicado, concorrendo como “Melhor ator”), cuja missão é também uma tragédia antecipada: ele quer ser a cura, mas o veneno de Danny é inoculado diretamente no sistema circulatório daquela família, local fora do alcance de John, que tem que lidar com a recorrente frustração de servir apenas como um band-aid para as perfurações da pele.
Esse embate reverbera tanto na trama quanto na forma: a peçonha de Danny representa bem as intrigas familiares, que se transformam em bolas de neve sem que se identifique o cume de onde elas partiram. Os segredos familiares – sempre abafados em prol da aparência perfeitamente lapidada da família enquanto instituição, – afetam a encenação e, sobretudo, a câmera, que se torna uma espectadora escusa, sempre à espreita, sorrateira por trás das portas, paredes e objetos que compõem as casas. Esse olhar enevoado, esteticamente duvidoso, pois é frequentemente descompensado em suas composições, só encontra beleza quando John, o band-aid, “tanto bate até que fura”, e, por fim, convertido em substância infiltrada nessas entranhas familiares, neutraliza os efeitos de Danny, bem como o próprio corpo de irmão – sentado à beira de uma praia pantanosa, John encara o horizonte, não sem antes perpassar o corpo de Danny, que flutua afogado pouco adiante. A câmera então se coloca no alto e fixa aquele instante em que o conflito finda e a paz desponta plena.
É o plano final do penúltimo episódio desta temporada inicial, e os corpos inertes – um pelo choque, outro pela morte, – são contrapostos a esse horizonte em que a linha se dissolve e não se sabe se o céu é quem invade a água ou o contrário, assim como não se sabe se o veneno absorveu ou foi absorvido pela cura. Numa trama cujas intrigas são subcutâneas, a única certeza aparente é que a abjeção do confronto dá lugar a um breve e único instante de beleza, proporcionado, ironicamente, por aquela que interrompe as linhas sucessoras e os laços consanguíneos: a morte.