Por Álvaro André Zeini Cruz
“O travelling é uma questão de moral”, disse Jean-Luc Godard, invertendo a oração de Moullet ao discorrer sobre o abjeto – característica atribuída por Rivette, – travelling de Kapò. Mais do que pontuar sobre a espetacularização, através da linguagem, de uma morte cuja abordagem deveria passar longe do espetáculo – a de uma mulher judia num campo de concentração, – Godard assinalava algo essencial: qualquer escolha estética é também ética. Se o travelling mais controverso da história do cinema foi este, feito por Gillo Pontecorvo, o mais desconcertante, mas no extremo oposto moral, foi o realizado por Douglas Sirk em Tudo o que o céu permite.
No melodrama dirigido por Sirk, a viúva Cary (Jane Wyman) escandaliza sua já criada prole ao se apaixonar pelo jardineiro mais jovem (vivido por Rock Hudson). Perto do desfecho da trama, ela, afastada do amante pela pressão social, passa a ceia de Natal ao lado dos filhos, cada qual com suas vidas muito bem arrumadas e agora afoitos por venderem o ninho materno. Cary, que já tinha consciência do sacrifício injusto ao qual fora pressionada, antevê sua própria solidão no presente ganho: quando a televisão é colocada no meio da sala, a câmera se aproxima com violência da tela do aparelho, que reflete a imagem da própria protagonista, sozinha e aprisionada entre as molduras do quadro, enquanto a voz off do filho cria uma fina ironia ao descrever a vida maravilhosa que aquele aquário eletrônico está prestes a transmitir.
Para transcrever a tragédia daquela mãe prestes a ser violentada pelos próprios filhos, Sirk opta por um recurso da linguagem audiovisual cuja ferocidade é igual à da agressão dada nos atos em cena. O travelling acaba assim como única escolha possível, sendo o desdobramento formal mais próximo ao que se passa no texto (proximidade que não trai o universo imagético de elegância forjado por Sirk). Não há, entretanto, a forma abjeta como o conteúdo é tratado no filme de Pontecorvo: não se trata do nazismo ou muito menos de se estetizar a inanição do corpo vítima do Holocausto, que são os interesses do cineasta italiano. A ligação proposta por Sirk é mais profunda e complexa: se dá pela alma. Chegamos a um momento único e essencial da alma de Cary e o travelling é o enunciado indispensável para tanto.
Ao longo de sete temporadas, a série Mad Men instrumentalizou esse travelling sirkiano como raras vezes se viu na produção americana contemporânea. Quando, no episódio piloto, Peggy (Elisabeth Moss) é sucessivamente humilhada pelo ginecologista por querer fazer uso de anticoncepcionais, a câmera avança sobre seu rosto indefeso e constrangido, não para violentá-la ainda mais, mas para que se estabeleça uma conexão, para que estejamos também na maca, no lugar de Peggy. A violência textual é explicitada pela forma, que, no caso, é meio (e não fim, como acontece em Kapò). O contra-plano traz o mesmo movimento de aproximação em direção ao calendário na parede, situando o absurdo daquela opressão numa temporalidade: o ano de 1960. Ou seja, além da identificação contundente, esse travelling moral – mas não moralista – insere a personagem e, consequentemente, a nós, público, sob o peso moral de uma época.
O travelling em Mad Men é mecanismo recorrente para o desnudamento dessas almas mascaradas pelas aparências, maquiadas pela publicidade, mas que escapolem nos atos falhos em frente ao olhar rigoroso da câmera ou através do subtexto. Há, portanto, uma moralidade no sentido da construção de uma fabulação daqueles personagens, mas não um moralismo circunscrito sob o princípio do julgamento. O olhar constata e sublinha o desvelamento normalmente trágico desses seres, sem, no entanto, condená-los, até porque Don Draper e seus companheiros não precisam ser encurralados também pela câmera; o mundo cumpre suficientemente bem esse papel.
Nesse sentido, nenhum travelling se equipara, nem dialoga tão bem com o do já citado filme de Sirk, quanto aquele feito sobre Joan (Christina Hendricks) em Person to person, episódio final da série. Joan, cujo sonho inicial era encontrar um verdadeiro amor e constituir família (algo que, ironicamente, é Peggy, que queria o oposto, quem cumpre), vê-se dividida entre o relacionamento e a oportunidade de reconstruir sua carreira (ela, que episódios antes vira sua posição profissional sólida se esvair pelo fato de ser mulher). O diálogo é voraz: Richard, o companheiro, reclama que um novo negócio ocupará todo o tempo, energia e atenção de Joan e já emenda um possível fracasso, mas quando ela propõe o casamento, ele, divorciado, se esquiva. O telefone então passa a tocar, recobrando o trabalho à cena e ressaltando a bifurcação em que Joan se encontra; a escolha a ser feita é ainda mais complexa que a de Cary, pois a dúvida da personagem de Sirk era sobre reconstruir ou não a vida, enquanto a de Joan está em como se dará essa reconstrução, algo que para ela, envolverá sempre uma perda, um estilhaçamento. Quando Joan se levanta para atender o telefone, o contra-plano traz o descontentamento de Richard, que apanha seu blazer e se prepara para partir. No momento em que ele vira as costas e sai, Joan, solitária, emoldurada pela porta da cozinha, é contraposta à mesa de café na sala, antes possível lugar de comunhão daquela pretensa família. O corte para um plano médio a realoca para o centro do quadro e, quando o bater da outra porta finaliza a saída de Richard, o travelling avança na direção do rosto daquela mulher, cujo sonho esteve ali próximo e agora escoa pelo ralo – porque, apesar da evolução do espaço ocupado pela mulher na sociedade (entre a trama do filme de Sirk e a ambientação do episódio final de Mad Men há uma diferença de quinze anos), a felicidade para elas ainda está muito distante de ser “tudo o que o céu permite”. Coube a Joan uma escolha, captada pelo mais violento e doloroso travelling de toda a série. Não era a ela que o travelling queria violentar; mas a nós, para que sentíssemos toda a dor daquela voz embargada e daqueles olhos titubeantes. O travelling de Kapò era físico, interessado em “reenquadrar o cadáver em contra-plongée, tomando cuidado para inscrever exatamente a mão levantada num ângulo de seu enquadramento final”, como descreveu Rivette. Os sirkianos, tão bem apropriados por Mad Men, transcendem: são aproximações da alma.