Fantasmagoria no fazer cinema

Por Gabriel Carneiro

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(pode conter spoilers)

Terceiro e último filme de Ícaro Martins e José Antônio Garcia como dupla, Estrela Nua (1985) continua a peregrinação desses ex-alunos de cinema da ECA/USP na Boca do Lixo. Cinéfilos, cheios de referências, foram os formados pela academia que realmente se aventuraram pela realização no então polo industrial de cinema paulista – outros, como Walter Rogério, André Klotzel e Aloysio Raulino, chegaram a trabalhar no local, mas não dirigiram filmes atrelados a esse sistema de produção.

Ser atrelado à Boca do Lixo, vale dizer, vai além de fazer filmes com alguma produtora da Rua do Triumpho, tendo parte da equipe técnica e do elenco formado pelos profissionais da região. É preciso seguir alguns códigos, especialmente após a intensificação da produção no final dos anos 1970, além de ser limitado por um baixo orçamento, advindo de investidores privados. Entre eles, cenas de sexo e nudez feminina, convenções dramáticas de certos gêneros narrativos (comédia, melodrama, policial, suspense etc) e comunicação com o grande público. Pois bem. Realizados no começo da década, ainda tentando se defender da invasão de filmes de sexo explícito que dominou o mercado, O Olho Mágico do Amor (1981) e Onda Nova (1983) traziam muitos elementos da típica produção paulistana da época. Enquanto O Olho Mágico do Amor pendia mais para o melodrama – em que uma secretária se vê seduzida pelas aventuras sexuais de uma prostituta que espia através de um buraco na parede –, Onda Nova se ligava à comédia juvenil – acompanhando as desventuras de um time de futebol feminino recém-formado. Eram filmes típicos da Boca do Lixo, que, porém, traziam um olhar muito arguto e refinado sobre o tema da sexualidade, livre e aberto a todos os tabus, com uma inventividade e um requinte formal muito grande. Eram filmes essencialmente jovens, tanto no conteúdo quanto na forma, cheios de anarquias narrativas, que, além de tudo, assumiam a perspectiva da mulher, sem entronizar qualquer moralismo.

O longa seguinte da dupla, Estrela Nua, apresenta um processo de maturação do cinema do Garcia e Martins. Talvez o tempo de realização – o filme foi concebido logo após o lançamento de O Olho Mágico do Amor e só foi rodado em 1984 – tenha permitido maior elaboração do roteiro e do conceito visual. Diferentemente dos dois filmes anteriores, Estrela Nua contou com verba da Embrafilme, custeando parte da produção e a distribuição, o que talvez tenha contribuído na redução de cenas de sexo e nudez no filme. É também o filme mais elaborado em termos de referências, passeando por Clarice Lispector e por Nelson Rodrigues na composição dos dramas – além de várias citações ao próprio cinema -, deixando-o menos popularesco. Ainda assim, era um filme da Boca do Lixo, produzido novamente por Adone Fragano, da Olympus, e, mesmo que não competindo diretamente com os típicos produtos da Boca – já afundada nos explícitos -, mantinha certas concepções do cinema popular da região.

Estrela Nua acompanha Glória, uma jovem mãe e inexperiente atriz, que trabalha como dubladora. Ela é contratada para dublar Ângela, uma estrela do cinema e da TV, que havia se suicidado. No processo de dublagem, Glória vai incorporando cada vez mais a personalidade de Ângela, de maneira bastante inconsciente. Assim como Ângela, Glória também começa a ficar obcecada pela morte.

O filme trabalha assim a transmutação de personalidade e a ideia do duplo, ambos bastante recorrentes na vertente do horror psicológico. Se o filme não se assume como horror – mais como drama e suspense -, é inegável o seu apelo sobrenatural. Ângela passa ter cada vez mais uma presença fantasmagórica na trama e a povoar a mente de Glória – espelhos, fotos e, eventualmente, interferindo no cotidiano da dubladora -, e Glória, por sua vez, mimetiza aquela mulher que lhe causa estranhamento e dor. No longa, explicam que Ângela havia ficado depressiva com seu papel no filme – uma atriz que encenava diversos personagens femininos de Nelson Rodrigues que morriam e que, por causa disso, começava a ficar obcecada com a própria morte. Isso a teria feito chocar seu carro contra uma árvore. A partir do momento que Glória abandona a dublagem da personagem de Sharon Tate em A Dança dos Vampiros (1968) para dublar Ângela, ela segue os mesmos passos – trajetória comum nos filmes de assombração de duplos com um quê premonitório, como outro filme de um jovem diretor na Boca, na mesma época, Duas Estranhas Mulheres (1981) de Jair Correia -, quase como se aquele papel fosse amaldiçoado.

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Glória passa a se vestir e a se comportar como Ângela, vez por outra sendo que o corpo de Ângela assume o lugar de Glória, como se aquela personalidade estivesse tomando completamente a forma. A busca de tranquilidade passa a guiar Glória, a ponto de ela querer destruir os vestígios de Ângela em sua vida; porém, matar Ângela é matar a si mesma. Utilizando-se desses mistérios em torno das duas atrizes, Martins e Garcia criam uma composição imagética digna do gênero fantástico, com o abuso de quadros escuros e luzes recortadas, locações bizarras, e situações macabras (talvez a mais seja na banheira preta com velas derretidas ao redor; acima). A dupla também constrói a atmosfera e o tempo do longa como filme de suspense, com uma trilha sonora (composta por Arrigo Barnabé, com participação de Cida Moreira no vocal) calcado em vocalizes e num incidental sombrio. Estrela Nua acompanha Glória e, portanto, o que vemos e descobrimos tende a ser o que Glória percebe. A montagem intensifica esse recurso para o suspense: pausas dramáticas quando ela observa com atenção; percepções breves que logo se desvanecem; o extracampo interferindo no campo e modificando a ação da personagem; alternância entre planos rápidos e passeios com a câmera etc.

Mesmo sendo o mais hermético dos três filmes da dupla, Estrela Nua se insere completamente no cinema popular da Boca do Lixo, muito por conta das convenções narrativas do filme fantástico e de suspense de onde ele bebe, conseguindo ampliar sua comunicação com um público maior.

Cheio de referências diversas ao fazer cinema e ao processo de criação, assumindo-se como metaficção e questionando a própria imagem, Garcia e Martins, assim como fizeram em O Olho Mágico do Amor, terminam o longa num estúdio. Aqui, após se revelar a escrita da história que acabamos de ver, a câmera abre, mostrando que o lugar não passa de cenário ficcional num estúdio audiovisual, com direito a fundo infinito. O gênero servia, assim, de ponte para trazer uma série de reflexões sobre o cinema e a imagem.

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