por Álvaro André Zeini Cruz

Dia desses, perguntaram-me quando e como começou minha cinefilia. Uma curiosidade natural e inevitável em torno de quem é da área, mas nem por isso menos capciosa. Tivessem perguntando sobre meu interesse pela televisão (que antecede o cinema), saberia dizer que foi nas novelas, ali por volta de O Fim do mundo, de Dias Gomes, e O Rei do gado, de Benedito Ruy Barbosa. Foi quando encasquetei que queria escrever novelas, tornando-se uma brincadeira de criança a escrita de folhetins num caderno de 20 matérias (as tramas eram extensas e pretensiosas). A formatação desses “roteiros” foi aprendida de maneira autodidata a partir dos resumos das novelas que vinham no Telejornal, o caderno sobre televisão que havia no Estadão.
Mas quando e por que diabos eu me interessei pelo cinema? É claro que existia a afeição típica da infância, que, no meu caso, passava pelos desenhos animados (da Disney e os de Don Bluth, principalmente) e pelas idas esporádicas à videolocadora (no singular porque em Itápolis não havia tantas e por anos tivemos ficha numa só). Essas visitas se intensificavam nas férias, sobretudo quando um primo vinha; virava também brincadeira as sessões de cinema que eu, ele e minha irmã organizávamos com os VHS alugados (que oscilavam entre os desenhos e os filmes de terror).
Não tenho dúvidas de que foi dentro das videolocadoras que a cinefilia faiscou por aqui, mas não nesses primeiros anos da infância, quando me faltava inclusive autonomia para frequentar o lugar. Só um pouco mais velho (por volta dos 12), já em Bauru e com uma locadora a duas quadras de casa, é que virei cliente assíduo nas quartas, dia da promoção que comia boa parte da minha mesada. Mas o que havia disparado esse hábito, essa nova rotina que fez com que a adolescência fosse preenchida por DVDs? Ah, sim, o filme de Digimon.
Digimon foi o desenho derradeiro da minha infância, a última pá de cal sobre um Álvaro André que colecionou bonecos Power Rangers e jogos de Pokémon. Também tem sido uma animação que me acompanha, já que, nos últimos anos, alguns projetos da franquia têm tido como alvo esse público de jovens senhores nostálgicos de 30 e poucos anos. Não me estendo sobre a narrativa porque já escrevi sobre Digimon Adventure aqui. Caso é que naquele começo dos anos 2000, Digimon – o filme chegou ao Brasil. Não aos cinemas porque, diferente dos pocket mosters, os digital monsters não tiveram força para chegar às telas grandes daqui (ponho isso na conta da Angélica). Mas chegaram às locadoras de todo Brasil. Isto é, quase todas: não chegaram à finada Video Imagem do posto da esquina da Duque com a Xingu. Nem a nenhuma outra videolocadora bauruense.
Começou uma via-sacra: toda semana eu ia à locadora conferir pessoalmente se Digimon tinha chegado (evitava ligar; vai que os atendentes não tinham se dado conta ou esqueceram de registrar o filme). Mas, ao contrário da minha frustração, Digimon semanalmente não chegava. Vez ou outra, eu dava um jeito de ir a outras lojas, mas nada. Uma vez, passando férias na casa de uma prima em São Paulo, dei de cara com a capa numa locadora de bairro, mas, por algum motivo Digimon – o filme não partiu conosco na sacolinha plástica dos alugados.
Restou persistir nas prateleiras perto de casa, fazendo os atendentes responderem semana a semana a mesma pergunta. Quem me conhece sabe que eu não gosto de incomodar as pessoas, tampouco fazer com que elas desperdicem seu tempo de trabalho comigo insistindo num anime cuja música-título era cantada pela Angélica. Bem, talvez tenha sido esse traço de personalidade (um tanto incômodo, por sinal) o que fez com que, vez ou outra, para que não saísse de mãos abanando, eu alugasse um filme. Ou dois. Às vezes, quatro, porque aí devolvia só no domingo. E, assim, esperançoso de um dia achar o DVD de Digimon, comecei a passear entre as plaquinhas que marcavam os gêneros, a percorrer as prateleiras, a migrar dos lançamentos aos catálogos. Passava horas na locadora. Minha mãe achava que eu tinha um crush por alguma atendente; eu só estava lendo as capas dos filmes.
Digimon virou uma espécie de utopia, só alcançada anos mais tarde via Emule (e aí um outro universo, o dos torrents, se abriu). Quando voltei ao filme, aos 20 e tantos e já trabalhando com cinema, descobri que era um longa engambelado, lançado no Ocidente a partir de três curtas – as duas primeiras partes sensivelmente melhores do que a última. Essas duas frações do filme foram dirigidas por Mamoru Hosoda, que tinha também dirigido um único episódio – considerado icônico – da série. Desse retorno a Digimon, parti para A Garota que conquistou o tempo, Guerras de verão, Crianças lobo, O Rapaz e o monstro e Mirai. Hoje, Hosoda é um dos cineastas que acompanho com atenção justamente por ser um dos que conseguem me emocionar com a mesma persistência com a qual eu ia à locadora. Sobre Digimon, assumo que não me esforcei para terminar de ver o reboot lançado em 2020, mas me defendo com esse reconhecimento atrasado (bem mais do que a chegada do DVD a Bauru) de que, de alguma forma, Digimon me levou aos filmes; mais do que isso, me fez alugá-los (ainda que pelo constrangimento). Trouxe-me a uma cinefilia.