Por Álvaro André Zeini Cruz
Convém começar com um aviso: no limiar entre a década 1990 e os anos 2000, Digimon representou o último suspiro da infância deste que vos fala. É provável, portanto, que este texto apresente um carregamento ainda maior desta onipresença crítica que é a tal da subjetividade. Bem, estão avisados, okay?!
Lançado em 1999, Digimon Adventure – Digital Monsters –, anime da Toei Animation e temporada inaugural de uma franquia fraccionada, desembarcou no Brasil (não veio de Varig, Varig, Varig) sem o melhor dos marketings por aqui: teve Angélica como garota-propaganda, enquanto Eliana amadrinhava os Pocket Monsters (aka Pokémons) exibidos na TV Record. A pecha do plágio recaiu sobre Digimon injustamente, e por dois motivos: 1. o anime produzido pela Toei foi um desdobramento de outra febre dos anos 1990 – os tamagochi; 2. para além dos monstrinhos que evoluíam, não havia nada em comum entre as duas produções; Pokémon, por exemplo, era um anime episódico, Digimon, serializado, com arcos que duravam vários capítulos. Na verdade, bem por trás dos galhos, o parente mais próximo de Digimon numa árvore genealógica imaginária estaria na Marvel dos anos 1980 – especificamente em Caverna do Dragão.
Tanto em Digimon quanto em Caverna do Dragão, um grupo de crianças é tirado de scholē – tempo livre, segundo a etimologia grega, destinado à reflexão e formação do indivíduo – e lançado numa jornada de aprendizado a ser cumprida em mundos hostis. Inseridos em territórios desconhecidos, os personagens de ambas as tramas recebem poderes especiais vinculados às suas personalidades: na animação americana, a liderança de Hank dá a ele a mais incisiva das armas – o arco capaz de produzir flechas mágicas –, a impulsividade de Bob se concretiza num tacape, enquanto o auto-protecionismo de Eric faz dele detentor de um escudo. Em Digimon, a associação é ainda mais direta: através de brasões conquistados pelas crianças, os digimons, que cumprem a dupla função de serem instrumento de proteção e companheiros de jornada desta infância heroica, adquirem poderes – o Agumon de Taichi (Tai), o líder do grupo, é beneficiado pelo brasão da coragem; Koushiro (Izzie), o nerd, e seu Tentomon recebem a insígnia da sabedoria. Amor, amizade, confiança, sinceridade e esperança são os demais brasões iniciais que evidenciam o tipo de jornada a ser trilhada – a da lapidação moral.
Quando, por exemplo, Taichi é levado de volta para casa, seus amigos permanecem no mundo virtual e um dilema é montado: deve o líder negar sua essência e permanecer no casulo ou retornar para ajudá-los? Em outro episódio, a coragem característica do protagonista atravessa um limiar perigoso, tornando-se uma ambição obsessiva que faz com que seu parceiro digimon evolua para um monstro grotesco e descontrolado. A vida é feita de escolhas e nem sempre fazemos a certa, explica Digimon. Há que se lidar com as consequências.
As regras do jogo de Digimon Adventure se assemelham às de Caverna do Dragão: o Vingador, oponente principal do grupo de Hank, tem dois representantes análogos em Digimon – o vampiro Myotismon e o demônio Devimon. O mentor enigmático, o icônico Mestre dos Magos, tem em Gennai seu aprendiz oriental, ambos especialistas em propor provocações ao invés de respostas prontas (afinal, tratam-se de jornadas de aprendizado). Os mundos inóspitos das duas animações têm desdobramentos parecidos, sobretudo quando colocam suas armadilhas: atraídas por uma suposta proteção ou acolhimento, as crianças são constantemente arremessadas ao perigo que se instaura sem sobreaviso. Esses mundos, construídos na superfície da animação 2D, não são, entretanto, imageticamente rasos, homogêneos, como os das animações contemporâneas, em que o colorido parece vir do Paint Brush (ver A hora da aventura ou Apenas um show); são repletos de nuances que se espalham nos matizes e tons que se impregnam uns nos outros. Em Digimon Adventure, os backgrounds permeados por pontos e manchas dão complexidade visual a esse mundo de aventura, que embaralha elementos do mundo real em espaços inesperados (como as estranhas cabines telefônicas colocadas ao longo de uma praia).
Em meados da temporada de Adventure, a lição se adensa. Um oitavo brasão entra em jogo – o da luz – e com ele concretiza-se uma noção arquetípica básica: onde há luz, há sombra. O mal emerge quando menos se espera, sem qualquer explicação. É assim também no episódio–homenagem a Lovecraft, em que uma criatura reptiliana (Cthulhu, talvez) atrai Hikari, detentora do brasão da luz, para as trevas. O mal existe e ponto; resta a nós lidarmos com essa ideia dolorosa e, aparentemente, démodé em boa parcela das animações atuais (vide Discovery Kids). Se o mal é inevitável, que se dirá da morte, outra presença recorrente em Adventure. Entre os perigos, entretanto, há espaço para os primeiros amores, para o humor (muitas vezes escatológico) e para as últimas brincadeiras, afinal, embora panfletado como infantil (Kodomo), Digimon preocupou-se em retratar a infância não como um estado final e permanente (como faz Pokémon e seus personagens que não crescem), mas como o estado transitório que realmente é. E se as crianças de Caverna do dragão terminaram involuntariamente presas àquele mundo-tempo de aprendizado por conta do controverso final nunca realizado, Taichi e seus amigos retornaram este mês próximos à fase adulta, com demandas ainda antigas, mas, claro, uma série de novas questões. Em Digimon, é sempre tempo de digivolver.
Tri
Cresceram. 15 anos após Digimon Adventure, cuja sequência – Adventure 02 – ocorreu no ano seguinte, a franquia retorna a seus personagens originais após temporadas avulsas, cujas histórias eram independentes. Cresceu também como projeto. Primeiro porque Digimon Adventure Tri foi pensado para ser exibido também em salas de cinema (por ora só no Japão); segundo, porque se a animação como técnica acabava prejudicada em temporadas de 50 episódios, aqui, reduzida a seis filmes de 80 minutos (que devem gerar uma temporada de 24 episódios), ganha força como jamais vista na série. O design dos personagens e a qualidade das sequências de batalhas são os ganhos mais visíveis: o contorno exíguo dos traços e a retidão das linhas extinguem o visual infantil de outrora (a substituição dos olhos graúdos é a mudança mais evidente); as lutas – com movimentos truncados e planos-chaves repetidos em Adventure e 02 – colocam a série definitivamente no hall dos animes de batalha (a melhor temporada nesse sentido havia sido Tamers).
Tri veio atender principalmente aos fãs da série original e, portanto, está cercado de referências e nostalgia. Não está, entretanto, ancorado ao passado: a iminência da idade adulta afeta a todos; neste primeiro episódio, especialmente a Taichi. Se, na infância, o heroísmo e o clima de aventura iam ao encontro de sua qualidade moral – a coragem –, aqui, a maturidade e a consciência plena de que todo ato gera uma consequência, fazem com que ele penda ao polo oposto – a covardia. Cabe a Yamato/Matt (brasão da amizade), seu Yang, resgatá-lo do estado de latência. Neste primeiro filme intitulado Saikai (Reunion, em inglês), atualizam-se conflitos, peripécias (as amorosas, antes sugeridas, tornam-se mais incisivas), o humor, a forma. Para além do surgimento de um novo oponente (numa trama que mais provoca do que revela), um problema contundente assoma: como alinhar as vidas agora encaminhas, distantes do tempo de scholē? Como permanecer herói se o agora é Chronos, tempo terreno e intempestivo que consome as horas cada vez mais apertadas entre os compromissos da idade adulta? Instaura-se um novo dilema, ainda que, mais uma vez, moral. Digimon, cujo leque de referências no passado já ia a nomes como H. P. Lovecraft e Jorge Luís Borges, talvez esteja entre os mais adultos e complexos animes sobre os enigmas da infância, vista não como corpo sólido, mas como uma energia, um movimento, uma fruição que escorre entre os dedos. Tempo de crescer ou coisa assim.