Se meu apartamento falasse

por Juliana Maués

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“Você sabe, eu costumava viver como Robinson Crusoé; quero dizer, naufragado entre 8 milhões de pessoas. Então, um dia, eu vi pegadas na areia, e lá estava você”.

A fala, proferida pelo protagonista a certa altura das mais de duas horas de “Se meu apartamento falasse”, serve de guia para esta leitura um tanto atropelada de um filme cuja preferência, se não é unanimidade dentro da obra de Billy Wilder, é apenas por se tratar de um diretor excepcional, cuja carreira proveu muitos grandes filmes.

A trama é velha conhecida: C.C.Baxter, “C for Calvin, C. for Clifford”, jovem funcionário de uma grande companhia de seguros, tenta escalar seu lugar até o topo da empresa emprestando seu apartamento para que os diretores possam manter pequenos encontros amorosos extraconjugais. No caminho, entretanto, esbarra com a ascensorista Fran Kubelik (Shirley MacLaine, a dona das pegadas) – cujo emprego revela-se metáfora interessante tendo em vista a ambição de Baxter e, especialmente, o deslocamento sofrido pela personagem no decorrer do filme. Se o cargo de ascensorista a coloca como meio para atingir um lugar ambicionado (do 19º ao 27º andar, aquele dos executivos), a pessoa de Fran Kubelik termina por revelar-se como único fim desejado por Baxter, em uma reviravolta esperada, mas ainda fantástica devido ao ritmo com o qual é desenvolvida, ao talento sem par de Jack Lemmon, à doce melancolia que dá o tom do filme e equilibra com a comédia tão cara a Wilder.

Os primeiros planos do filme, após os créditos, encarregam-se de falar dos 8 milhões de pessoas nos quais Baxter se encontra náufrago. São planos abertos da cidade de Nova Iorque, cuja abrangência diminui à medida que nos aproximamos do local de trabalho do protagonista e, enfim, da mesa onde ele exerce sua função entre os 31.259 funcionários da empresa. Fórmula bastante utilizada no cinema noir* pelo fatalismo que imprime (lembremos os inícios de “Baixeza” e “Cidade Nua”, por exemplo), aqui é suavizada pela fala do protagonista em voz over, que nos acompanha durante as imagens e nos tranquiliza, fazendo-nos seguros de que não se trata de mais um daqueles filmes em que o destino pinça uma pessoa na multidão apenas para mostrar-se irrevogável e, portanto, invencível. A expressividade do recurso aqui talvez se aproxime mais da sequência inicial de “Sinfonia de Paris”, mas tampouco o ritmo – ou as cores! – é o mesmo. Desses dois extremos, “Se meu apartamento falasse” fica no meio: é menos uma história de acontecimentos ou pessoas extraordinárias do que de pessoas comuns, com suas vidas e seus talentos comuns.

A apresentação que temos de C.C. Baxter já traz aquilo que o acompanha no decorrer do filme: a multidão e o isolamento. Entramos no 19º andar do prédio de escritórios para encontrá-lo sentado em uma das incontáveis e uniformes mesas, dentre as quais seria tarefa difícil localizá-lo se não fosse o caso de sermos guiados por ele mesmo. Com o fim do expediente, todos os funcionários se retiram, com exceção dele – cujo apartamento, a trama nos explica, está sendo utilizado por um dos diretores. Esse estar cercado de gente, mas, ainda assim, sozinho, como na proferida metáfora de Robinson Crusoé, é o que caracteriza o personagem durante o filme todo, com a recorrência de cenas em que, partindo de uma multidão, Baxter vai ao encontro do espaço desabitado – seja ativa ou passivamente; afastando-se ele próprio ou sendo deixado para trás pelos outros. O afastamento está na encenação, mas também nos cortes que isolam o personagem. Não se trata do solitário andar por entre a gente camoniano, uma das descrições do amor romântico para o português. Há níveis que precisam ser estabelecidos: há o sozinho e há o solitário – como naquelas belas linhas de “Fogo contra Fogo”** (Michael Mann, 1995). Se Baxter é sozinho e permanece sozinho durante todo o filme, o amor pela Miss Kubelik o livra de ser solitário. Ela o preenche, não apenas no nível metafórico, mas ao ocupar o espaço do enquadramento que sempre sobra quando ele está em cena.

A apresentação dela é também emblemática: um diálogo prosaico entre os dois, no elevador, sem cortes. Em relação a ele, ela é aquela a quem o campo/contracampo não isola. Com o personagem sempre na periferia da ação, mesmo quando sozinho, os planos de Baxter parecem deixar espaço para que alguém mais os ocupe. É na companhia de Kubelik que ele atinge não o protagonismo da cena, mas a capacidade de compartilhá-la de forma equilibrada com alguém. Wilder aproveita a predisposição do Panavision para construir belos planos de conjunto dos dois, que, se numa visão mais prática mostram um eficiente uso do formato de tela horizontalmente alongado, em outra, são sinal da sintonia existente entre os personagens, bem como do desejo de deixá-los juntos pelo máximo de tempo possível. No privilegiado espaço do apartamento, a profundidade de campo e a mobilidade da câmera, sempre suave, revezam-se para garantir o efeito. Nos diálogos, praticamente sem cortes, as únicas vezes em que o espaço entre os dois é rompido pela força do dispositivo é quando algum estranho (pessoa ou sentimento) acha de se intrudir na conversa. [There’s] nothing i’d like better — you know togetherness, Baxter diz em algum momento.

Essa cumplicidade visual entre os dois, já estabelecida na sua primeira cena juntos, não cresce, mas se estabiliza no decorrer do filme, para culminar na bela sequência final, em que o esquema é quase o mesmo do início: plano de conjunto e diálogo sem cortes, com os dois lado a lado. Apesar de o lugar não ser o mesmo – não se trata mais um elevador lotado e, sim, do apartamento vazio, então a câmera pode se dar ao conforto de ficar um pouco mais distante sem correr o risco de incluir intrusos no quadro que pertence aos dois – há o que permanece: os personagens estão sozinhos agora como o estavam antes; sozinhos, porém não solitários. A conversa também mantém o tom prosaico: Baxter tenta elevá-lo lançando um “eu te amo” no meio, mas Kubelik prudentemente o conduz de volta ao tom, que não é o do arrebatamento da paixão, mas daquela afeição tranquila que nasce do convívio. Quando o “The End” anuncia o final, igualmente, não é um ardente beijo apaixonado que ocupa a tela, mas a cumplicidade de uma troca de olhares e, sim, de sorrisos.


*No que se trata da relação com o cinema noir, é sugestiva ainda a presença de Fred MacMurray como diretor de uma companhia de seguros, tendo em vista seu papel em Pacto de Sangue, do mesmo Wilder, alguns anos antes.

**Eady: You travel a lot?/ Neil McCauley: Yeah / Eady: Traveling makes you lonely? /Neil McCauley: I’m alone, I am not lonely.

3 pensamentos sobre “Se meu apartamento falasse

  1. Achei o texto parecido com o filme: à primeira vista, enorme em extensão e intimidante de algum modo (o filme: claustrofobia da burocracia; a crítica: erudita e referencial), mas, no decorrer do caminho, uma tranquila discussão sobre coisas humanas e pessoas. Gostei da observação sobre a cumplicidade no final, acho que não havia pensado nisso: miss Kubelik não quer repetir com C. C. Baxter o mesmo erro que com Sheldrake, idealizando uma relação que deve ser não só de afeto mas de respeito.

    Fiquei com a impressão que não viste “A turba”, por ter falado de “Baixeza” mas não desse filme do King Vidor. É uma obra-prima. Procure, se nunca viu, reveja, se já lhe assistiu.

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