Teoria cristã de um filme adoentado

Por Álvaro André Zeini Cruz

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Numa das últimas cenas de A teoria de tudo (The theory of everything, EUA, 2014), Stephen Hawking (Eddie Redmayne) e a ex-esposa Jane Hawking (Felicity Jones) observam os filhos brincarem pelos jardins da Rainha quando Hawking diz “olha o que nós fizemos”. Jane, então, observa as crias toda orgulhosa. Deveria ser o ápice emocional do filme – e pode até apertar alguns coraçõezinhos, considerando que o filme foi minimamente calculado para ser um vale de lágrimas –, mas não é. Por um motivo simples: não foi esta a história que vimos. Não vimos um recorte da relação de Hawking com os filhos, tampouco vimos a história de Stephen Hawking, conhecido e premiado cientista portador de uma doença degenerativa. Em suma, não vimos a história de um homem; vimos a história de uma doença que se abate sobre um homem. E quando o cinema se interessa mais sobre doenças do que sobre homens e, ainda por cima, usa uma estética instagram para estetizar a doença, é porque ele próprio anda meio dodói.

Não bastasse isso, há uma moral cristã das mais abjetas entre os sintomas. Lá pelas tantas, Jane se aproxima de Jonathan (Charlie Cox), seu regente do coral da igreja – e tal aproximação só avança após o aval do marido, que diz compreender caso ela precise de ajuda. Apesar dos boatos, a relação segue platônica, até que, em determinado momento, Hawking viaja para um concerto no exterior, enquanto Jane segue para acampar com Jonathan e as crianças. É a montagem paralela quem surge como indefectível representante da moral e dos bons costumes: enquanto Hawking passa mal durante o espetáculo (crise que o levara a traqueostomia), Jane coloca os filhos para dormir e se aproxima da barraca de Jonathan. A alternância das imagens garante: o “pecado” da mulher levara à “penitência” do marido.

Jane e Jonathan se afastam e o romance fica em suspenso. Só retorna quando Hawking dá fim a seu casamento para envolver-se com sua enfermeira, que, ao contrário de Jane, parecia enxergá-lo além da doença. O filme, portanto, passa o tempo todo tentando justificar seu protagonista através da doença, colocando na fogueira sua personagem mais rica – a esposa. É Jane quem protagoniza a melhor cena do longa, aquela em que, durante um jantar com Hawking e Jonathan, ela narra com entusiasmo e conhecimento únicos as descobertas científicas do marido. É um dos raros momentos em que a doença é posta de lado e em que se vislumbra o elo vital daquela relação.

O moralismo se confirma adiante: Jane procura Jonathan na igreja gélida e opressora como sempre. Se beijam e, com a desvinculação do casamento, o sol se permite penetrar pelos vitrais, iluminar o novo casal, transformar o espaço. Agora, sim, esta é uma relação abençoada por Deus! Mas só quando o marido não a quis mais.

Ou seja, num filme meio doente (e que pelo jeito só aceita a cura por milagre do Espírito Santo), o que respira sem ajuda de aparelhos são mesmo as atuações. E, enquanto Redmayne vem se confirmando como queridinho da temporada (com justiça, por motivos muito óbvios), Jones é quem impressiona por não se apagar ao lado de uma interpretação feita para atrair todos os olhares. Talvez porque ela não precise dos olhares dos outros: tem os seus próprios, aqueles olhões expressivos que, tal como na cena do jantar, dão conta de passar mais verdade do que qualquer fala ou desdobramento da trama. São olhos que fazem lembrar que há vida além da doença.

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