Sonho de vida

Por Gabriel Carneiro

Nos anos 1980, um mercado paralelo no audiovisual começa a se formar. Não só o cinema era um caminho, mas também o vídeo, que se abria para outros formatos não tão vinculados às artes plásticas. Em São Paulo, duas produtoras polarizaram esse mercado, a TVDO e a Olhar Eletrônico, conseguindo penetrar, ainda que com dificuldade, a televisão, trazendo muitas inovações à mídia. Assim como a TVDO, a Olhar Eletrônico era uma produtora de vídeos formada por jovens recém-formados na universidade, influenciada pela televisão, que buscava uma alternativa inventiva e irreverente para a comunicação de massa, de maneira crítica, muitas vezes. Enquanto a TVDO tinha um caráter mais experimental e ácido, a Olhar se caracterizava pela forte interatividade com o meio e pelo trabalho com o humor de muitas de suas produções.

A Olhar Eletrônico foi fundada em 1981 por quatro antigos estudantes da FAU/USP interessados no vídeo – Fernando Meirelles, Marcelo Machado, Paulo Morelli e Beto Salatini. Logo se juntariam a eles Dario Vizeu, Marcelo Tas, Renato Barbieri e Toniko Melo, entre outros. Haviam comprado uma câmera U-Matic Sony DXC e uma ilha de edição no Japão e montaram na Praça Benedito Calixto uma produtora. A vontade era de experimentar com o formato e o aprendizado foi autodidata. Após os primeiros destaques em 1982 e em 1983, a Olhar é convidada a produzir conteúdo para a Abril Vídeo e para a TV Gazeta, entre outras, entrando de vez na televisão. Dentro do contexto televisivo, criam o personagem fictício Ernesto Varela, o repórter, interpretado por Marcelo Tas, que seria provavelmente seu principal legado.

Porém, antes de adentrar o mundo televisivo, a Olhar Eletrônico fez um de seus mais importantes experimentos, o vídeo Marly Normal (1983), dirigido por Fernando Meirelles e Marcelo Machado. Produzido independentemente, sem vínculo algum com a televisão, Marly Normal busca construir, a partir da montagem, em seis minutos, a rotina de um dia de uma escriturária, percorrendo 24 horas. O filme quebra com o padrão ficcional clássico ao utilizar uma montagem com ritmos alternados, mas guiado especialmente pelo tique-taque de um relógio, com planos durando, em média, um segundo, narrando a história por fragmentos. Esse recurso de montagem, o machine-gun cut, seria incorporado em outro gênero audiovisual, o videoclipe.

O vídeo Marly Normal almeja mostrar o esvaziamento da vida de uma pessoa a partir da rotina; a ideia de que o ritmo frenético da cidade de São Paulo traz a solidão. Isso é evidenciado na segunda parte do filme. Marly (Lucia Lisboa), de volta para casa, assiste à TV e dorme no processo. O filme ganha um caráter lúdico, de sonho, através da metalinguagem. O que vemos na televisão são as imagens da sala, especialmente do único companheiro de Marly, seu gato preto, que passeia pelo ambiente e pela tela da televisão. Marly também está lá, tanto em imagens do presente diegético quanto em imagens do seu dia – quase como se essa rotina que as pessoas têm só pudesse existir no registro do imaginário.

A brincadeira do vídeo é com o gênero folhetinesco televisivo, a telenovela, que trabalha com o cotidiano de diversos personagens. Marly Normal não tenta, propriamente, emular o gênero a partir de suas formulações formais e narrativas, ainda que busque o retrato do cotidiano de uma personagem. Emula, porém, seu imaginário. A vida de Marly só é reverenciada no sonho, quando vira programa televisivo, novela. O vídeo não transforma o dia-a-dia de Marly em algo típico da programação televisiva. Pelo contrário, sua vida é mostrada como algo tão banal e sem liberdade, que só o imaginário da televisão salva. É isso que parece interessar a Machado e a Meirelles, mas sem buscar mimetizar um modo de fazer televisivo.

Inspirado no poema Magnificat[i], de Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa), a irreverência de Marly Normal vem em trabalhar a prisão da rotina através da forma. São tantos os momentos irrelevantes da vida de Marly, usuais e sem graça, que mal merecem um segundo de tela. Mas o tempo continua a passar. Com a televisão, Marly se liberta e encontra o registro do sonho. O sonho, porém, como vemos, é sua própria inserção na TV, onde não há momentos chatos e irrelevantes – ainda que, as imagens que vemos sejam as mesmas já mostradas de sua rotina ou de seu presente sono. O vídeo, assim como o poema de Álvaro de Campos, termina com a frase “será dia!” O poema clama por um dia em que acordará do pesadelo de viver a vida que vive. Marly Normal também.

 

[i] Datado de 7 de novembro de 1933, o poema diz: “Quando é que passará esta noite interna, o universo, / E eu, a minha alma, terei o meu dia? / Quando é que despertarei de estar acordado? / Não sei. O sol brilha alto, / Impossível de fitar. / As estrelas pestanejam frio, / Impossíveis de contar. / O coração pulsa alheio, / Impossível de escutar. / Quando é que passará este drama sem teatro, / Ou este teatro sem drama, / E recolherei a casa? / Onde? Como? Quando? / Gato que me fitas com olhos de vida, que tens lá no fundo? / É esse! É esse! / Esse mandará como Josué parar o sol e eu acordarei; / E então será dia. / Sorri, dormindo, minha alma! / Sorri, minha alma, será dia!”

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