Sereno Esquecimento

Por Phillippe de C. T. Watanabe

alice

A memória talvez seja o que de mais valioso um ser humano tenha. Ali estão guardadas pessoas queridas e não tão queridas que ajudaram a nos construir, histórias significativas, acontecimentos determinantes na construção da identidade. Ali está guardado o que cada um é. Perder a memória, torna-se, então, perder-se de si mesmo, não existir.

Para sempre Alice (Richard Glatzer, Wash Westmoreland – 2014) conta a história de Alice Howland (Julianne Moore), uma renomada professora de linguística que, após completar 50 anos, desenvolve Alzheimer. Ao expor e discutir os crescentes esquecimentos da protagonista, o filme é explícito quanto aos sinais da doença. Todo o processo de diagnóstico e aceitação é mostrado, o que já torna o enredo de certa forma previsível e emocionalmente carregado. Contudo, o bom elenco e uma grande atuação de Julianne Moore elevam o que se vê na tela.

Alice é uma pessoa com um grau de instrução alto e uma posição de destaque, o que torna cada esquecimento uma questão dolorosa para ela. Se, em público, ela consegue, momentaneamente, disfarçar a fuga das palavras com piadas, no carro, na volta para casa, os olhos avermelhados demonstram a angústia vivida. A preocupação se torna incontornável no momento em que, durante uma corrida costumeira, ela não consegue reconhecer o local onde passa parte dos seus dias, a universidade onde leciona. A resultante visita ao médico é um dos mais fortes períodos do filme. Alice se mostra segura e serena ao responder às perguntas feitas pelo especialista – que não é mostrado nesse momento, reafirmando a segurança da protagonista de que não se trata de nada sério – porém, ao final, ela parece discretamente desmoronar, em uma mistura de embaraço e emoção, ao não conseguir lembrar de uma informação passada no começo da consulta. A atuação de Moore, com respostas rápidas acompanhadas de um sorriso, chegando ao riso quase choroso, sem jeito e cheio de medo, é sutil o suficiente para impregnar a sequência de força e significado. O plano sequência é bem utilizado na cena ao dar espaço – quase literalmente, com uma parede vazia atrás da protagonista – à Moore, deixando-a dominar a tela.

A família de Alice completa o enredo. Não há surpresas quanto àa construção desta: uma filha exemplar, uma filha apresentada como problemática – somente por escolher uma carreira que sua mãe, com um emprego estável, considera perigosa -, um filho pouco presente que seguiu a profissão do pai e um marido que parece dedicar mais tempo ao trabalho do que à família. A doença da protagonista afeta, como poderia se esperar, toda a dinâmica familiar, aproximando uns e distanciando outros. Aqui também o filme se mantém em um patamar seguro, mostrando como a filha “problemática” e distante passa a ser o elo mais próximo da mãe. A única surpresa é a posição adotada pelo marido, John Howland (Alec Baldwin), que, inicialmente presente, parece esquecer, por conta de sua obsessão pelo trabalho, da condição definitiva de sua esposa. Até mesmo as quase súplicas da protagonista por um ano sabático não surtem efeito. Quando pensamos que, finalmente, ele se dará conta de sua atitude egoísta, sua personalidade, diante da já quase apagada de Alice, confirma-se: ele parte sozinho para outro estado e deixa a esposa sob os cuidados da filha mais nova.

Uma das cenas mais emocionais se passa logo após a apresentação de uma peça de Lydia Howland (Kristen Stewart), a mais nova das filhas. Com o fim do espetáculo, toda a família se dirige ao encontro de Lydia nos bastidores, e, quando Alice se aproxima para a parabenizar, demonstra um afeto distante, normalmente entregue a desconhecidos que, por um momento, impressionaram-nos. A própria família se torna estranha.

Para sempre Alice mostra com cuidado a evolução do Alzheimer. Demonstra a dor e toda a dificuldade envolvida na doença, que transforma qualquer atividade cotidiana em um grande esforço. A vida deixa de ser da própria pessoa – algo dolorosamente demonstrado na sequência em que a protagonista tenta repetidamente seguir os passos claramente explicados, por ela mesma, de como se matar, porém, esquece-os após alguns lances de escada. A pessoa deixa de ser si mesma, vivendo apenas nas lembranças dos que ao cercam. Desse modo, toda a dor contida no portador da doença, em Alice, desaparece. Resta somente o silêncio e a serenidade de uma vida que nunca existiu, em branco.

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