Por Juliana Maués
Toda história é construída em uma perspectiva que, do presente, retoma o passado. Nossas próprias histórias de vida são elaboradas nesse esforço de, visitando a arca das memórias, resgatar o que nos é interessante, o que por algum motivo ficou marcado, o que nos ajuda a dar coesão à nossa própria narrativa. Trazer tudo conosco nunca é uma possibilidade; aí, entra o esquecimento. A maior parte das lembranças cotidianas, dos momentos à toa, cairá no domínio do esquecível. É desse material que Jonas Mekas constrói o seu Out-takes from the life of a happy man, daqueles fragmentos de película que, por um motivo ou outro, não entraram nos seus filmes anteriores, disso tudo que foi esquecido e que agora retorna, não como memória, mas como imagem.
Na solidão inabalável, o cineasta monta o seu filme – cineasta, que, neste cinema-poesia, é o eu-lírico, mas é também o próprio Mekas. Intercalados às imagens em 16mm do acervo particular do diretor, que trazem cenas da vida cotidiana gravadas no decorrer de anos passados, estão planos no presente do trabalho quase artesanal de montagem da película. “Tarde da noite, a cidade está dormindo, só os cineastas estão despertos”, a voz de Mekas nos diz em off. A solidão do cineasta, que monta seu filme enquanto todos dormem, é também a desse homem que ora traz à tona as imagens de uma vida pregressa quando muito do que figura nelas já dorme; já não mais existe para além dessas imagens.
É importante frisar que não há vida fora das imagens justamente para chegarmos ao pressuposto inverso: apenas nas imagens, a vida se mantém – e ela é plena. “É tudo real isto que vocês veem, cada imagem, cada detalhe, tudo é real e não é memória. Isto não tem mais nada a ver com as minhas memórias. As memórias se foram, as imagens estão aqui”. No breve discurso que surge em dado momento do filme, Mekas reafirma sua vocação para o presente. Não se trata de rememorar o passado, de um olhar saudosista para o que foi, mas de celebrar a atualidade dessas imagens, o quanto tudo o que vemos, por ter sido gravado e por estar ali perante nossos olhos, deixa de ser memória e torna-se realidade.
Não são só as imagens que Mekas atualiza. Além da voz em off que ele sobrepõe a elas em alguns momentos, há pequenos textos que emergem em cartelas durante o filme. São fragmentos de cartas enviadas ao diretor por uma menina de 15 anos, Diane, há mais de cinco décadas, mas cujas palavras surgem vivas e encadeadas às imagens de tal modo que não há como classificá-las em tempos diversos: todas pertencem ao presente. É a peculiaridade do formato de diário, que o diretor clama para o seu cinema (documentário, nunca): preservar no acontecido ainda o calor do ato; o que se perde em análise, é ganho em vivacidade. A melhor metáfora, nesse sentido, vem do próprio Mekas. Ela está na lembrança, que ressurge a certo momento do filme, de quando o cineasta tinha cinco anos e contava para o pai, em forma de canção, o que havia feito durante o dia: “E eu sei que tudo o que estou fazendo agora, tudo o que tenho feito desde então é feito tentando alcançar esse nível de intensidade, de proximidade com a realidade”, nos diz em sua voz arrastada, mas nunca vacilante.
Tratar as imagens como imagens e não como memórias também evita que se caía em certas armadilhas. Em momento algum, há condescendência com o próprio passado. Mekas não é auto indulgente (e, se alguém sente a nostalgia que essas imagens carregam, diria que é mais o espectador). Consciente de que sua matéria-prima não são as lembranças, mas o esquecimento, qualquer tentativa de montar uma narrativa coerente é desde o início posta por terra. Ao invés disso, ele se preocupa com as imagens, sua expressividade, ritmo, duração, encadeamento, sua materialidade. À primeira vista, pode parecer um cinema do etéreo e não é de duvidar que a mesma proposta, realizada por outro cineasta, assumisse esse tom. Mas, nas mãos (literalmente) de Mekas, é tudo muito palpável. “Poesia não se faz com ideias, mas com palavras”, teria dito Mallarmé. Em cinema, faz-se com imagens. E Mekas, bem, já disse ele mesmo: “O que é importante e está em falta no cinema é poesia. A poesia é a minha pátria”.