Por Beatriz D’Angelo Braz
Nathalie Granger (França, 1972) é um dos poucos filmes dirigidos por Marguerite Duras que foi lançado em DVD no Brasil, pela Lume Filmes, e pode ser facilmente encontrado. Duras foi uma das expoentes da literatura francesa no século XX, especialmente após o sucesso de seu romance autobiográfico O Amante na década de 1980. Geralmente associada ao chamado Nouveau Roman, Duras, como os demais autores dessa “escola”, aventurou-se por diferentes campos e linguagens, mantendo um diálogo constante com o cinema. Sua obra inclui mais de quarenta livros, além de roteiros cinematográficos, peças teatrais, textos jornalísticos, entre eles um conjunto de crônicas publicadas no Cahiers du Cinéma. Duras, contudo, não se restringiu a escrever para cinema ou sobre cinema, mas realizou uma obra considerável de filmes dirigidos por ela própria. Sua filmografia possui em torno de vinte títulos, sendo India Song (1975) um dos mais célebres. Este filme chegou a ser indicado para três prêmios César e foi a submissão francesa para o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1976, ainda que não tenha recebido a indicação. Apesar disso, os filmes de Duras permanecem restritos a festivais e mostras em homenagem à autora e são pouco conhecidos no Brasil. A relação de Marguerite Duras com o cinema é constantemente lembrada apenas pelo roteiro de Hiroshima mon amour (1959), o primeiro longa de Alain Resnais, ou pela adaptação cinematográfica de Jean-Jacques Arnaud de seu romance O Amante (1992).
Esse é um fato a se lamentar. O cinema de Duras evidencia um forte diálogo com as ideias do Nouveau Roman e da Nouvelle Vague, sobretudo em suas experiências na década de 1970 com La femme du Gange (1974) e India Song. A proposta cinematográfica de Duras é a de dessincronizar o som e a imagem, realçando a capacidade de representação da palavra ao invés da imagem. Isso já se pode observar na sequência inicial de Hiroshima mon amour, em que as vozes de Emmanuelle Riva e Eijin Okada são sobrepostas à imagem de seus corpos entrelaçados e a de feridos pela bomba atômica em Hiroshima. Ali, já se evidencia uma caraterística que irá permear as produções fílmicas de Duras: o uso de vozes em off recitativas para compor a narrativa.
As experiências de Duras levaram-na cada vez mais a dissociar essas vozes da imagem, aprofundando a proposição da Nouvelle Vague de fazer caducar a primazia da imagem. Em Hiroshima mon amour, a narração em off da personagem de Riva é completada pelas imagens de seu romance com um soldado alemão em Nevers, durante a Segunda Guerra Mundial. Por sua vez, em India Song, têm-se quatro vozes recitativas anônimas, fora da diegese, que explicitam as percepções e pensamentos dos personagens, mas não correspondem a eles. Os personagens permanecem mudos em uma mise-en-scène estilizada, enquanto as vozes anônimas relatam o triângulo amoroso ambientado em Calcutá. Essa proposição culmina com a autora lendo seu manuscrito em frente à câmera em Le Camion (1977).
Nesse trajeto em direção à total valorização do texto no cinema, Nathalie Granger se destaca como uma exceção. Se os diálogos longos e literários são um dos traços distintivos do cinema de Duras, nesse filme eles são escassos. O roteiro evidencia a relação com as propostas do Nouveau Roman em uma total ausência de trama ou intriga. Nathalie Granger mostra um dia na vida de duas mulheres (Lucia Bosé e Jeanne Moreau), dividindo seu tempo entre tarefas domésticas banais e o conflito pela expulsão da pequena Nathalie da escola, em decorrência de seu mau comportamento.
Ambientado quase que inteiramente em uma casa nos arredores de Paris – o filme foi filmado na casa da própria Duras -, a câmera explora os cômodos da casa e os jardins, remetendo ao documentário observacional, ao simplesmente registrar as duas mulheres em suas atividades rotineiras e as duas crianças, especialmente Nathalie, brincando no jardim, remando num barquinho em um lago. O silêncio decorrente da ausência de diálogos, a banalidade das ações, os enquadramentos da casa – lentas panorâmicas mostram as janelas e as paredes, concomitantes a planos-conjunto das mulheres nos cômodos com a câmera parada – e das folhas caídas no quintal e a repetição da fala da diretora da escola de Nathalie contribuem para a configuração de uma atmosfera soturna, vazia e desesperadora. A inação, o silêncio e a expressão facial de Bosé, ou a ausência dela no caso de Moreau, criam um clima que chega a ser sufocante.
Na primeira metade de filme, chama atenção a quebra no silêncio das personagens feita pelo rádio. Por meio dele, ouve-se o locutor lendo pequenos excertos de notícias trágicas – os chamados fait divers – de crimes cometidos por crianças ou jovens. Essas intervenções do rádio e a repetição da fala da diretora da escola de Nathalie, enfatizando seu estranhamento frente ao comportamento violento da criança, reforçam ainda mais o clima sombrio e o medo do que está por vir. Essa expectativa do espectador será, porém, frustrada. Há uma construção por meio da antítese. Nas primeiras sequências, é ressaltado o comportamento violento e a necessidade de colocar Nathalie em um colégio interno para ser disciplinada. Entretanto, nas poucas sequências em que a menina aparece, evidencia-se o contrário. Nathalie surge sempre em silêncio, brincando tranquilamente e não demonstrando qualquer comportamento violento ou agressivo.
É curioso observar também que a menina terá bem pouco protagonismo, apesar de dar título ao filme. Mesmo as duas mulheres não parecem deterem-se muito na questão da violência da menina ou de sua expulsão. Elas continuam suas atividades banais, queimando folhas, fumando cigarros, sendo observadas pela câmera parada de Duras. Além dessa realidade vazia, há no filme traços do absurdo e talvez até certa ironia, sem que haja necessariamente humor. Pode-se destacar a fala de Moureau ao atender ao telefone e, vendo ser um engano, ela diz: “Senhora, nessa casa não há telefone.” Os gestos das duas atrizes são estilizados, chegando a posarem em silêncio para a câmera, reforçando a recusa da verossimilhança.
Dentro dessa ótica do absurdo, certo turning point será a chegada de um vendedor de máquinas de lavar, interpretado por um extremante jovem Gérard Depardieu. O vendedor encontra a porta aberta e entra sem pedir permissão ao ver as duas mulheres na sala. Ele, então, rompe o silêncio que predomina no filme com sua tentativa, desde o início fadada ao fracasso, de vender uma máquina de lavar-roupas às duas mulheres. A fala de Depardieu, frente à total inação, desinteresse e silêncio das duas mulheres, torna-se um monólogo que oscila entre o absurdo, o surreal e a profunda melancolia, em decorrência da incapacidade do vendedor de se articular, o desinteresse de ambas e a conclusão final de que elas já possuíam o modelo que ele tanto tentava vender, sem nem se darem conta.
Os longos planos da casa com seus corredores vazios e folhas no jardim, a escassez de diálogos e a trama desconexa, que enfatiza mais a inação do que a ação, aproxima Nathalie Granger de uma tradição do cinema francês de filmes com ritmos pausados, em que predomina o nada, o silêncio e a significação por meio da imagem. Nesse sentido, Nathalie Granger se destaca na produção de Duras como uma exceção na trajetória da autora de valorização da palavra no cinema, ainda que contenha traços em comum com seus demais filmes, como a separação do som e da imagem. As palavras são dispersas e não são o modo de comunicação principal dos personagens. Pelo contrário, a atmosfera soturna e de tensão é composta pelo silêncio, pelos planos da casa – em especial a câmera parada em frente aos espelhos onde se vê pedaços da casa ou Bosé e Moreau de pé -, e do bosque, bem como panorâmicas mostrando o lago, o barquinho, o vento na água, as crianças brincando e as mulheres cuidando do jardim. Assim, Duras explora nesse filme outra forma de construir sua narrativa fílmica. Ela, então, apresenta uma visão que se diferencia da maior parte de seus filmes e, ao mesmo tempo, se relaciona com os trabalhos de cineastas como Philippe Garrel, Chantel Akerman ou Claire Denis.