Por Renato Coelho
*Nota editorial: o autor Renato Coelho desempenhou a função de fotógrafo no filme em questão. Acreditamos que tal envolvimento não desqualifica sua análise, mas consideramos ético mencionar o fato ao leitor.
Linguagem é o 51º filme dentro da vasta obra do cineasta e artista visual Luiz Rosemberg Filho, nascido na cidade do Rio de Janeiro em 1943. Trata-se de um curta-metragem realizado no ano de 2013, feito de maneira independente e com quase vinte minutos de duração.
Luiz Rosemberg Filho iniciou sua trajetória nos anos 1960, nunca se filiando a grupos como o Cinema Novo ou o Cinema Marginal. Sempre se manteve mais independente, apesar de próximo a realizadores como Mario Carneiro, Andrea Tonacci, Sérgio Santeiro, Joel Yamaji, entre outros. Realizou longas-metragens seminais como Jardim das Espumas (1970), A$suntina das Amérikas (1976) e Crônica de um industrial (1978). Há mais de 30 anos vem realizando vídeos de curta e média-metragem de forma totalmente independente, sempre com a colaboração de amigos e pessoas próximas, como o fotógrafo Renaud Leenhardt, com quem já trabalhou em mais de 30 filmes. Rosemberg é, ainda, autor de muitos textos e de um extenso número de colagens.
Os inúmeros vídeos que Rosemberg realizou desde meados dos anos 1980, em geral filmes-ensaio que abordam diversos temas, são sempre feitos de maneira livre e artesanal, muitas vezes utilizando imagens e materiais pessoais do cineasta. Linguagem não é diferente: logo no início do filme, após uma citação a Walter Benjamin e a imagem do quadro A origem do mundo, de Gustave Coubert, vemos uma longa sequência (com cerca de cinco minutos de duração), que retrata um mural que Rosemberg tem em sua casa, já há muitos anos. Um enorme mural, certamente sua maior colagem, no qual estão fotografias com seus amigos, sua família, imagens de filmes, cineastas que admira, imagens de seus filmes, bem como outras imagens diversas, que de certa maneira constituem um grande mosaico de sua vida, em diferentes períodos e momentos.
Neste início, sob as imagens do mural e sua carga afetiva, ouvimos sons que parecem comunicações via rádio, entre militares americanos, planejando um ataque. Ouvimos sons de tiros, do ataque. Acompanhada por música lírica, a sequência possui forte carga poética. É fato que em seus filmes, mas especialmente em seus vídeos, Rosemberg trabalha constantemente com o embate entre imagens e sons, entre imagens e imagens. São ensaios fílmicos nos quais se sobressai uma certa estética de choque, de contraste entre imagens e sons a priori dissonantes, emergindo desta dialética outras questões, sempre tangíveis num espectro mais livre e poético, e nem sempre assimiláveis de forma fácil ou esquemática.
Essencial em Linguagem, assim como em todos os vídeos de Rosemberg a partir dos anos 1990, é a estética de colagem. Seu cinema é constantemente aludido como filme-colagem, ou vídeo-colagem. Seja através da profusão de citações – à literatura, poesia, filosofia, pintura, cinema –, sempre aproveitadas de forma orgânica ao discurso de seus filmes, seja pelo uso de imagens e sons de arquivos e à constante ressignificação destes. Mas, sobretudo, pela utilização de suas próprias colagens na feitura de seus filmes, colagens que o autor realiza diariamente, e em espantosa quantidade, de forma artesanal.
Em suas colagens, Rosemberg utiliza geralmente como matéria-prima recortes de revistas e de materiais de publicidade – signos da cultura de massa –, transfigurando-os de forma poética, e criando sempre novos e originais sentidos e proposições, em composições imagéticas que por vezes aludem a movimentos artísticos como o Construtivismo, o Surrealismo e a Pop Art. É comum ao autor, ainda, a reutilização / reciclagem de imagens de obras de arte, de diferentes períodos históricos; bem como o uso de fotografias, num misto de colagem e fotomontagem. Nessas imagens, quase sempre, estão presentes referencias ao imaginário do cinema. Linguagem aborda e discute o imaginário da “linguagem” num viés totalizante, mas sobretudo este imaginário, o de próprio cinema e sua linguagem.
Sob as imagens das colagens de Rosemberg, ouvimos uma narração, na doce voz de uma jovem. Vemos a imagem da garota por pouco tempo, e logo uma sucessão de colagens, que perdura por grande parte do filme – as colagens foram empreendidas especialmente para Linguagem. O texto é de autoria do próprio cineasta, como sempre ocorre em seus filmes ensaio, reflete o próprio estatuto das “imagens” e é imbuído de certo tom melancólico – certamente reforçado pela interpretação –, mas seu discurso encontra a “redenção” no poder e no ato da criação.
Na sequência final ouvimos e vemos imagens de arquivo de um massacre brutal, as mesmas que apenas ouvíamos no trecho inicial do filme. Foram imagens vazadas e divulgadas pela Wikileaks, de um ataque cometido por militares norte-americanos no Iraque, no qual pensavam eliminar “terroristas”, mas na verdade acabam atingindo civis e crianças, o que parece ser uma van escolar. É o mais real espetáculo do horror.
O filme por vezes se utiliza do signo da guerra, enquanto próprio fim da criação, em contraposição à criação, ao afeto e ao seu viés libertário. Isso entre diversas outras questões que aborda, e que podem também dar vazão à múltiplas visões e interpretações. Linguagem é certamente um filme político, mas não simplista e panfletário. Um libelo que se volta contra a violência da guerra, mas que exalta a vida e a criação, saídas possíveis enquanto sublimação e transformação.
Linguagem foi exibido em diversos festivais e mostras de cinema durante o último ano, e talvez tenha sido responsável por uma nova repercussão acerca da obra de Luiz Rosemberg Filho, sobretudo entre novos realizadores de cinema. Mas é certo que Rosemberg nunca parou de produzir e sempre se manteve fiel aos seus princípios. Após 32 anos realizando curtas e médias, o cineasta acaba de finalizar seu mais novo longa-metragem, intitulado Dois Casamentos, com lançamento previsto para o ano de 2015. E continua um turbilhão a todo vapor, escrevendo, realizando colagens, e com muitas ideias para novos filmes.
LINGUAGEM pode ser assistido em:
TEU TEXTO ANALÍTICO E AFETUOSO É MELHOR QUE O FILME. AJUDA E MUUUUITO O ESPECTADOR A ACOMPANHAR A NARRATIVA NÃO-LINEAR DO FILME. PARABÉNS E VAMOS PARA OS PRÓXIMOS! É O QUE NOS AJUDA A SUPORTAR AS TANTAS E TANTAS TRAIÇÕES BAIXAS NA CULTURA E O BRASIL COMO UM TODO. PARABÉNS MESMO & OBRIGADÍSSIMO! JÁ ESTÁ NO MEU FACE.
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