Por Álvaro André Zeini Cruz
Garota exemplar (Gone girl, EUA, 2014), de David Fincher, dá continuidade a uma temática proveniente de A rede social (The social network, EUA, 2011): a das vidas vazias. Eram duas no longa sobre o Facebook: a do próprio Mark Zuckerberg, cuja tragicidade se resumia na cena final (o F5 obsessivo atualizando a página), e a de Eduardo Saverin, que descobre da pior maneira que estes são tempos em que não se pode confiar (ou seja, em que se está sozinho). A questão da confiança extravasa para este filme: Amy (Rosamund Pike) desaparece na data de seu quinto aniversário de casamento. A suspeita, claro, recai sobre o marido Nick (Ben Affleck), algo ressaltado através da montagem – ao menor gesto do protagonista há o corte para as reações desconfiadas daqueles que o cercam. No entanto, tudo não passa de um plano de vingança – e dos mais maquiavélicos – elaborado por Amy. O motivo primordial: as traições do marido, que vão da desatenção cotidiana a um caso extraconjugal. Ou seja, a quebra da confiança entre o casal.
A questão da confiança está, portanto, no centro do filme, e é ela justamente que será colocada à prova, já que durante boa parte da trama, somos manipulados a desconfiar de Nick através da construção narrativa (a montagem, o diário de Amy lido em voz over). Mas uma outra narrativa habita a trama e se constrói a partir das especulações em torno da vida do casal, algo que cresce exponencialmente a partir do momento em que entra em cena um outro personagem: a mídia.
O plano de Amy se alicerça sobre uma compreensão indispensável: a de que a mídia é o gatilho de uma arma. A arma, por sua vez, é a opinião pública. As peripécias da personagem servem, portanto, para manejar essa arma, enquanto nós somos manipulados pela construção fílmica. A crise entre o casal, que, a princípio, pertence ao âmbito privado, adentra a esfera pública num caminho sem volta a partir do desaparecimento de Amy, e o fato de ser ela uma subcelebridade – cuja infância fora comercializada, como Nick mesmo aponta em determinado momento -, só acentua a comoção em torno do caso. Não demora para que o público tome a situação para si e saia em vigílias à procura de Amy. Não só: a massa se põe a postos para defender a honra e a “memória” da esposa desaparecida, para julgar e condenar culpados; ainda que desconheça a realidade do que se passava entre a pseudo-vítima e o suspeito algoz, essas pessoas tem o discurso que, nos dias de hoje, impõe e legitima verdades: aquele encontrado na boca dos âncoras e nas manchetes dos jornais.
Há um momento contundente que pontua a volatilidade dessa massa manobrada: Nick discursa para a vizinhança e quase consegue virar aquele recorte da opinião pública a seu favor quando finalmente entende o óbvio – deve dizer aquilo que esperam que seja dito, portar-se da maneira que esperam que ele se porte. Parece simples, mas não é, não quando tudo se coloca à espreita de um deslize, de um ato falho (ou quando qualquer ato é transformado em ato falho). A encenação de Nick é interrompida pela chegada da vizinha, que brada sobre uma suposta, e até então desconhecida, gravidez de Amy. O discurso do marido aflito é então soterrado pelo “furo”, pela notícia fresca, e a desconfiança, que até então se esvaía, retorna à tona, fazendo com que Nick seja perseguido pela multidão.
Garota exemplar é mais inchado do que deveria, algo que assola também o filme anterior de Fincher, O homem que não amava as mulheres. Contudo, há aqui algo que pulsa, uma pergunta que pauta o filme: o que faz essa multidão ser tão suscetível à tragédia alheia, a ponto de querer vivenciar o horror como algo coletivo, pertencente a todos? A resposta está em Amy, cujo motivo primordial (o rompimento da confiança), camufla algo mais profundo – o tédio, o esvaziamento de uma vida que aglutina e representa tantas outras. Afinal, quando rotinas tediosas e vazias esbarram num drama que parte justamente dessas mesmas características, projeta-se nele as próprias frustrações – o drama deixa de ser privado para ser partilhado. Temos, enfim, um drama para chamar de nosso, para atenuar o aborrecimento dos dias, e tratamos de usufruí-lo ao máximo, fazendo selfies ou devorando todo e qualquer material/opinião que o orbite (e, nesse processo, é comum nos tornarmos bipolares). Amy é alçada ao posto de heroína. Injustamente, mas isso não importa; o importante é que, aos olhares embaçados da massa, tem-se ali uma mulher que foi arrancada da proteção do lar, e que agora luta para a ele retornar. A identificação é inevitável, até porque, o que todos queremos (inclusive quando vamos ao cinema) é viver um pouquinho da jornada de um herói. Amy, no entanto, é a mentora dessa jornada: transforma o marido relapso e infiel, este sim protagonista, ao jogá-lo contra um mundo dos mais hostis, que, a despeito das incongruências que cercam o caso ou sua história pregressa, vai se empenhar para jamais compreender ou perdoar os defeitos desse protagonista. Não sem o aval de Amy. Ao final, Nick volta ao lar ciente de que ali viverá um inferno, que, no entanto, jamais irá se equiparar ao inferno que pode ser o mundo lá fora. Amy, por sua vez, conquista a certeza de que dificilmente cairá de novo no tédio, na rotina ou na solidão a dois; dali em diante, ela sempre será um ponto de atenção (e, mesmo após encerrado o caso, as emissoras insistem em não deixar a vizinhança). Como Zuckerberg, Amy conquista um poder, que vem através de um mesmo meio: a manipulação de uma rede social.
ps: A interpretação de Affleck, que há alguns anos se revelou um bom diretor, mas que cuja carreira como ator sempre fora vista como duvidosa, tem sido saudada com justiça. Já Rosamund Pike se sai melhor sempre que a personagem busca nossa confiança, mas se entrega a clichês (como os olhares perdidos) a partir do ponto em que Amy se assume uma psicopata.