Esperança roubada

Por Phillippe de C. T. Watanabe

ladrões

A década de 1940 foi marcada pelo extremismo no mundo. A face mais brutal e violenta do ser humano foi vista durante a Segunda Guerra Mundial, ao fim da qual, com duas bombas atômicas, tornou-se claro que tudo poderia piorar. A Itália, que lutou ao lado do Eixo, junto à Alemanha e o Japão, foi derrotada e se encontrava seriamente debilitada. O fascismo que a acompanhou, durante e antes da guerra, envergonhava a nação. Consolidaram-se novas potências político-econômicas e militares, enquanto outros países se encontravam destruídos material e moralmente.

É nesse cenário de desesperança que se passa Ladrões de Bicicletas (Ladri di biciclette, Itália, 1948), de Vittorio De Sica. Nas primeiras cenas vistas, o filme destaca seu tema principal e protagonista: o povo. Um amontoado de pessoas ocupa a frente de um prédio à espera de um chamado, que vem em forma de um nome: Ricci. O silêncio parece indicar que ele não se encontra naquela pequena multidão, até que um homem, olhando em volta, corre ao encontro de um distraído, e quase conformado, Antonio Ricci, que brinca com pedras em um chão seco e poeirento. Ricci se dirige ao homem que o chamou e que lhe oferecerá um emprego, uma oportunidade cara ao momento. Contudo, a áspera realidade do contexto não poderia simplificar a situação; para ocupar a vaga oferecida de colador de cartazes, uma bicicleta seria necessária. Ricci, mesmo não possuindo uma, prontifica-se ao trabalho.

Para conseguir uma bicicleta e, assim, não perder a chance oferecida, Maria, esposa de Ricci, decide penhorar lençóis. Tal encaminhamento da história poderia indicar um tocante conto de superação, porém, a vida mostrada no filme é dura e não se importa com quem está a sua frente. Em seu primeiro dia de trabalho, Ricci terá sua bicicleta roubada, acontecimento que guiará todo o restante do filme. Nas cenas seguintes, mostra-se, em uma simbólica imagem, a moeda vigente na crise. Por uma pequena janela, Maria passa os objetos a serem penhorados, e, na janela ao lado, Antonio, enquanto conseguia a necessária bicicleta, assiste a um homem subindo por uma enorme estante totalmente abarrotada de itens que, em um momento de extrema necessidade, foram trocados por uma quantia qualquer em dinheiro.

Como algo característico do neorrealismo italiano, e, principalmente, de De Sica, Antonio Ricci é vivido por Lamberto Maggiorani, um ator não profissional um cidadão sem ligação anterior com cinema. Ladrões de Bicicletas foi também o primeiro trabalho cinematográfico de Lianella Carell, que viveu Maria Ricci, e de Enzo Staiola, o Bruno Ricci, filho de Antonio e Maria. É a tentativa direta de aproximar a dramaturgia da realidade, o que alcançou um resultado impressionante de total entrega em cena. Toda a angústia e dor estão, durante todo o filme, estampados no rosto das pessoas. Quando o expressivo garoto Bruno fica magoado com o pai, seu sentimento é transparente, autênticoDurante todo o filme, a realidade é jogada sem pena na frente dos olhos da criança, seja, durante um jantar, quando a desigualdade é mostrada em forma de refeições, ou quando a suposta derrocada moral de Antonio acontece. O desespero de Antonio, mesmo posto em ações, não se limita a elas. Toda apresentação gestual aponta para o desconforto do presente.

A tentativa de se aproximar do real, além da atuação, passa pela direção de De Sica. Ao evitar transições bruscas e ao seguir as personagens com a câmera, somos totalmente absorvidos pelo filme. De Sica, ainda, é econômico em planos fechados no rosto dos atores, escolha visual que, em excesso, poderia carregar emocionalmente a história a ponto de transformá-la em um melodrama comum. Além disso, ao limitar o campo de visão do público a uma única personagem, a ideia do ‘todo’, do povo, uma das principais mensagens presentes no filme, seria perdida. Porém, também não se pode dizer que o indivíduo é esquecido, pois isso, provavelmente, resultaria em um filme frio. A preocupação com o todo não resulta na supressão do indivíduo.

A família Ricci não pode ser considerada protagonista de Ladrões de Bicicletas. Quando Antonio, no início do filme, é chamado ao trabalho, o povo está sendo chamado. Os Ricci, em resumo, são uma alegoria de todo um período triste e brutal. Opondo-se a isso, está a visão sensível e humanista de Vittorio De Sica. São os extremos de um era de extremos.

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