Por Álvaro André Zeini Cruz
Whiplash – Em busca da perfeição (Whiplash, EUA, 2014) é um filme burocrático desde o roteiro: a trama entre mestre e aprendiz nada acresce ao gênero – o professor (Terence Fletcher, interpretado por J. K. Simmons) esbraveja, o garoto (Andrew, Miles Teller) titubeia, mas, desafiado, segue adiante. O que há de mais interessante na performance de Simmons, indicado ao Oscar de melhor coadjuvante, é que ele justamente joga contra esse script: a trama bem que tenta se encaminhar para a velha história do mentor tirano que humilha e espezinha em busca do talento, da arte, mas Simmons não faz esse personagem e, pelo contrário, apara ao máximo qualquer nuance, deixando-o o mais próximo possível de um puro exemplar de “son of a bitch”. Esta é sua grande sacada. Pois a verdade é que o que se estabelece entre os dois personagens não é uma relação de aprendizado, mas um jogo de poder. A direção, que também vive de certa burocracia (o risco está na montagem!), compreende isso melhor do que o roteiro: na cena do primeiro ensaio de Andrew sob o comando de Fletcher, a câmera dá o devido peso à mão – instrumento de trabalho e de tortura – do regente; faz um travelling circular, contrapondo-a aos alunos, que entram em foco, à mercê daquele braço que tudo pode. Por fim, a mão soberana volta ao foco. Poder. É disso que trata o cerne do filme.
Porém há algo de periférico, mas mais pulsante do que essa disputa de poder em Whiplash: são as duas ou três cenas em que Andrew vive seu breve romance. Na primeira, ele troca algumas palavras com a balconista do cinema; seu olhar, no entanto, só se detém sobre a moça quando não é mais visto, não estão mais frente a frente. Adiante, vem o convite meio desajeitado para sair. Em uma pizzaria pouco apropriada, a moça lembra que, da primeira vez que o viu, Andrew não tirava os olhos do chão. “Meu pai diz que eu tenho problemas em estabelecer contato visual”, ele se defende. É o primeiro e único encontro; no seguinte, ele a dispensa, afinal, não há espaço para o amor (essa coisa meio torta) na vida de alguém que aspira a perfeição.
Andrew, que durante todo o filme busca a perfeição para sentir-se especial, desdenha a possibilidade de ser especial para alguém que não lhe cobra qualquer pré-requisito. Essa epifania se dá numa difícil conversa ao telefone: ele a convida para sua apresentação, aquela em que se prenuncia a batalha final com o professor, mas ela responde simplesmente que o novo namorado não gosta de jazz. O baque é duplo: há pessoas que não se importam com o que ele faz e a pessoa com quem ele gostaria de estar está com uma dessas pessoas! O passaporte para ser inserir como uma presença notável no mundo se dá, para Andrew, da mesma forma que para sua geração: através do talento e do esforço. Contudo, tal crença desmorona quando esse adolescente terminal descobre que ter importância para alguém pode ser algo mais simples, natural. Mas é tarde; a ânsia pela admiração do círculo adulto, representado pelo pai e pelo professor, fez com que ele perdesse o frescor. Resta ir adiante.
Ao final, a revanche se realiza, o talento aflora, mas não é bem algo bonito de se ver, por ser calculado demais, antinatural, triste. A admiração surge nos olhos do professor e do pai, mas, na plateia, a multidão é um corpo único, indistinguível, em que o rosto da garota do cinema não se ilumina (se é que ela está lá). Andrew se torna especial para uma porção de desconhecidos; ótimo, bem-vindo ao mundo dos adultos, já pode voltar ao trabalho. A superação se completa, mas é quase que trágica. O processo é mais interessante: esse titubear ao se colocar no mundo, enfrentamento inevitável na transição da adolescência para a fase adulta, é o que há de mais potente no filme. Dar conta disso é trabalho árduo de Miles Teller, cujo metrônomo oscila da sutileza (mas nunca do minimalismo) dos olhares fugidios às explosões com as baquetas em punho, sobre a bateria. Isso faz com que Whiplash seja um filme muito mais dele do que de J. K. Simmons.