por Álvaro André Zeini Cruz
No primeiro título da série Nós somos os campeões (The Mighty Ducks, 1992), dirigido por Stephen Herek, Gordon Bombay (Emilio Estevez) é um advogado jovem e ambicioso condenado a prestar serviços à comunidade após ser pego alcoolizado à direção. A pena dada a ele, um ex-jogador de hóquei, é justamente treinar um time do esporte formado por garotos de uma região pobre de Minneapolis. O chefe de Bombay, a primeira vista um homem solícito e preocupado, o afasta de suas funções e dá total suporte ao cumprimento da pena – o serviço comunitário irá fazer dele uma pessoa melhor e um advogado melhor, pontua o empresário, que mantém o salário de Bombay, além de um motorista a sua disposição. Mais prestativo, impossível.
No time, Bombay é responsável por treinar Charlie (Joshua Jackson) e seus amigos, e para isso, terá que lidar com traumas do passado, além de reencontrar seu rigoroso e competitivo ex-treinador. Os garotos, por sua vez, servem de mentores ao técnico, que não demora a se apresentar como uma pessoa melhor (e basta a antiga paixão pelo esporte ser reavivada para que isso aconteça).
Cada vez mais apegado ao time, Bombay convence o patrão benevolente a patrociná-los. Ducksworth (Josef Sommer) concorda, desde que o time seja batizado com a abreviatura de seu nome (que é, também, o nome de sua empresa): Ducks (“Patos”, em português). Na síntese narrativa trazida até aqui, esse chefe, figura secundária no filme, se faz determinante em dois momentos: no estabelecimento de um vínculo entre Bombay e os Patos, e no batismo de um time com quem ele sequer tem contato, já que nunca deixa seu escritório, no topo de um arranha-céu. Lá de cima, ele influencia os destinos de quem está abaixo, seja o funcionário, ou uma dezena de garotos pobres de um bairro afastado.
Nós somos os campeões se baseia, portanto, no confronto entre paixão (valor recorrente nesses filmes ligados a esporte) e poder. A advocacia, profissão que Bombay exercia até então de forma obcecada, cede à paixão pelo esporte que, ao falar mais alto, começa a incomodar o poder. Quando Bombay denuncia que um dos melhores jogadores do time rival deveria pertencer aos Patos por conta do distrito em que o garoto mora, pisa no calo de seu ex-técnico, coincidentemente, amigo de Ducksworth, o chefe. Tem-se aí a cena mais interessante do filme: o patrão exige que Bombay deixe essa história para lá, em troca do fim do serviço comunitário. Mas quando pensa que está tudo acertado, ouve um discurso moral de seu funcionário (acentuado por um singelo travelling in): “um time é algo ao qual você pertence, algo que você sente, algo que você tem que merecer. Eu não vou decepcionar aqueles garotos”. A máscara da benevolência e o pseudo-espírito humanista do patrão desmoronam e ele relembra sua posição de poder – aquele não é um pedido, é uma ordem. Bombay não só desacata a decisão, como despeja um monte de “quacks”, imitando um pato, na cara do chefe (momento que ecoa um anterior, no qual as crianças fazem “quacks” para a diretora da escola). Encerra apontando para uma camisa do time: “o senhor pode ter comprado esse uniforme, mas não o merece”.
A trama clássica faz com que a confiança entre o técnico e os garotos seja quebrada, mas ela logo se reestabelece para sublinhar o aprendizado do protagonista que passa de advogado implacável a um técnico cujo sucesso se baseia numa única palavra: diversão. Os Patos só ganham quando se divertem.
Na sequência, D2: Nós somos os campeões (D2: The Mighty Ducks, 1994), de Sam Weisman, a relação entre técnico e time é novamente abalada. Sob novo patrocínio, eles agora não atendem mais por Patos, mas por “Team USA” (“business stuff”, responde o técnico a Charlie, que está insatisfeito com a mudança). Ambos os lados se encontram deslumbrados pelo sucesso repentino e isso, claro, atinge o desempenho no jogo. Se antes Bombay exercia sua profissão de forma obcecada, a obsessão passa a afetar a paixão a ponto de matá-la. Morre também sua palavra de ordem – a diversão. Ganhar se torna sinônimo de manutenção de um status, que o técnico saboreia cheio de uma empáfia que acaba desmascarada pelo treinado rival: “Você é confiante demais. Arrogante. Americano”.
Bombay e os garotos vão assim da representação de uma América apaixonada para essa América obsessiva, pronta a dar suas cabeçadas. Essa dubiedade é explicitada durante uma aula de História: a professora conta que na Grécia antiga o esporte não era considerado uma profissão; o sentimento de orgulho era o que motivava as competições. Um dos alunos questiona se desde aquela época os americanos sempre venceram. A professora então ressalta que os Estados Unidos ainda não existiam e pontua que aquele é ainda um país jovem que está formando sua identidade. “A América é uma adolescente, como vocês”, conclui.
Para agirem como mentores do protagonista, os Patos precisam redescobrir a própria paixão, o que ocorre quando são desafiados para uma partida pelos garotos do bairro. Ou seja, para reencontrarem suas essências, precisam lembrar de onde saíram: a rua. Retomados esses valores, estão aptos a servirem de guia ao herói, que como outrora, retomará a questão da diversão, sua palavra-chave. É a deixa para trazer de volta a antiga identidade, camisa e vigor dos Patos.
Em D3: Nós somos os campeões (D3: The Mighty Ducks, 1996), terceiro e último título da série, desta vez dirigido por Robert Lieberman, Emilio Estevez retorna em uma participação reduzida, assumindo assim o papel de mentor que antes cabia aos garotos (tanto que só reaparece passada uma hora do filme, com o conflito já bem avançado). Os Patos agora estão numa escola de elite e têm que disputar terreno com o outro time da casa, os Warriors (‘Guerreiros’, em português), composto por playboys brutamontes e boçais. Há uma cena interessante: a paquera de Charlie colhe assinaturas pedindo a mudança do nome Warriors. Não há grandes explicações, mas parte-se do pressuposto de que ela julga um nome nocivo ao ambiente escolar. Charlie, no entanto, diz que não vê nada demais no nome e a garota, ao reconhecer nele um jogador de hóquei, se afasta – por mais que tente destituir a escola de certos valores, ela própria tem valores preconcebidos equivocados; e nem adianta Charlie evocar sua origem (“I’m not a Warrior, I’m a Duck”, ele diz).
Essa lembrança do que se é, de seu lugar de origem, será mais uma vez fundamental aos Patos, que, além de tudo, têm que se adaptar ao treinamento rigoroso do novo técnico que quer ensinar-lhes a qualquer custo a importância da defesa (um valor bastante americano e dos mais controversos quando beira a paranoia). Alçado ao posto de protagonista, Charlie vê essa lição como uma nova ameaça ao time, e, não à toa, ele e os amigos resolvem se divertir fora de campo, aprontando com os jogadores rivais (e, apesar dos atores já adolescentes, é o filme mais infantil nesse sentido). Contudo, a diversão acaba quando o mau desempenho dos garotos no esporte compromete as bolsas de estudos por eles ganhadas.
A educação surge, portanto, como moeda de troca, e mais uma vez, uma grande instituição tem nas mãos o destino daqueles garotos que saíram do gueto. É quando Bombay ressurge como advogado para defender junto ao novo técnico a permanência dos Patos na escola. E, claro, para mais uma vez, lembrá-los de onde vieram (novamente numa partida na rua).
Há, no entanto, uma mudança de discurso não muito óbvia nesse terceiro filme (ainda que o roteirista Steven Brill assine toda a trilogia): se antes se retornava às origens para vencer um mundo hostil (geralmente ligado ao poder), aqui se entende que se deve invadir esse mundo, demarcar território e usufruir desse poder, e não mais ser usufruto dele. O colégio elitista, a princípio rechaçado, passa a significar a possibilidade de um futuro até então inimaginável para aqueles garotos do subúrbio – eles podem até serem hostilizados, mas terão que ser engolidos por todos aqueles que se puserem contra. Ser e poder regem essas duas Américas de Nós somos os campeões: ambas partem da paixão e do orgulho como fatores a serem testados – podem ser usados em suas essências, ou desvirtuados, corrompidos, pelas instâncias que exercem o poder, mas também, claro, por aqueles que se deixam corromper. Bombay e seus garotos se deixam iludir pelas facilidades do poder, mas se desvencilham dessa ilusão ao retornarem às raízes, ao compreenderem que as origens são algo determinante e inseparável, indispensável ao processo de individuação (ainda que sejam tempos que vivem mais do agora do que do passado). Eles podem até serem os campeões (e de fato são em todos os filmes), mas como qualquer adolescente, dão umas boas cabeçadas pelo caminho.