Por Juliana Maués
Se o ato de ver é um dos grandes inspiradores da arte cinematográfica, em Don’t go breaking my heart, Johnnie To e Wai Ka-fai preferem a voz passiva: é um filme sobre o ato de ser visto. Sobre como todos nós estamos sempre a ser observados por alguém – fato que podemos nunca vir a comprovar, a não ser que esse alguém perceba que chegou finalmente o momento ideal de atravessar para o outro lado. Parece o enredo de um filme de horror ou, no mínimo, de um suspense bem paranoico, mas é apenas o mote principal de uma das melhores comédias românticas lançadas nos últimos anos.
Na sala de cinema projetada por To, Shen-Ran (Louis Koo) é o espectador que há tempos observa, da distância, a jovem Cheng Zixin (Gao Yuan-yuan). Quando ela rompe com o namorado de vários anos, ele vê, enfim, a oportunidade de vir a ser parte do filme que há tanto tempo assiste. Bonito, bem-sucedido e com um carisma infalível, Shen-Ran parece o candidato ideal – mas, como sempre, há um ponto fraco, que logo será revelado. Para complicar a situação, quase no mesmo momento em que ele entra na vida de Zixin, um outro sujeito também aparece em busca de um lugar no coração da moça, o talentoso arquiteto Fang Qihong (Daniel Wu): romântico, idealista e totalmente devotado a ela. Qihong, que, quando da sua primeira aparição, é um bêbado a perambular pelas ruas de Hong Kong, conta ainda mais um ponto a favor: a sua reabilitação à vida social e profissional se deve inteiramente ao afeto que recebe de e nutre por Zixin.
Na elaboração dos quadros, To tira proveito dos espaços amplos e demonstra a sua habilidade em posicionar os elementos em cena, bem como o senso de ritmo e coreografia bastante evidentes em seus filmes de ação, pelos quais deve a maior parte do prestígio de que desfruta no cinema atual. Nesse sentido, uma das peças-chaves é um vídeo que Shen-Ran filma ao celular, no qual, em uma sala vazia, Zixin canta e dança improvisando com elementos do escritório onde trabalha. Fundamental para o filme, aliás, é a arquitetura de Hong Kong, onde a maior parte da estória se passa. Utilizando-se de seus grandes arranha-céus envidraçados, To constrói a narrativa. As superfícies de vidro – seja dos edifícios, sejam as janelas de um ônibus como em uma das primeiras sequências do filme – funcionam como uma tela através da qual Shen-Ran, a princípio, vê Zixin: penetráveis apenas o suficiente para que se possa ver, mas ainda assim intransponíveis.
A metáfora cinematográfica está presente também no modo como a relação entre os dois personagens progride durante o filme, que remete a um curto passeio pela história da sétima arte. No começo, não passa de um registro documental, seja pelos olhos de Shen-Ran ou pela câmera de seu celular, da moça que trabalha em um escritório no prédio em frente: silencioso e unilateral. Até que chega o dia da interação e tem início a fase das pantomimas e do fantástico, materializadas em flores de post-it nas janelas do escritório e truques de mágica feitos e apreciados à distância. E, tal qual no cinema silencioso, então as únicas palavras são as que aparecem escritas em cartelas. Daí, é rápido para a fase falada – e a comédia, e o romance, e o drama. É onde as coisas desandam; é quando Qihong também começa a competir pelo papel de coadjuvante no filme de Zixin.
Mais do que uma disputa de feitos, todavia, o que parece se desenvolver entre os dois é uma corrida por ser visto. “Quem é visto é lembrado…” e o propósito aqui é não se deixar esquecer. Zixin passa então a espectadora, mas não qualquer uma senão aquela com o poder de decisão; se antes era cinema, agora é TV; temos um reality show! Não se entenda, todavia, que, conforme algumas críticas alegaram, o que To acabe construído no seu filme seja uma metáfora do amor como negócio, como uma corrida desenfreada em busca de pontos. Até poderia vir a ser, não fosse To herdeiro de toda uma tradição melodramática que o cinema de Hong Kong abraçou desde seus primeiros dramas históricos, passando pelas artes marciais e pelos heroic bloodshed de John Woo e companhia. Herança que, por mais secos que seus filmes possam ser – vide Election, por exemplo –, sempre desponta e não os deixa cair no cinismo.
Com este filme, não poderia ser diferente. A disputa entre Shen-Ran e Qihong é tratada com sensibilidade o suficiente para não ser superficial. Tratando-se de Johnnie To, também há aquela sensação de leveza, de uma câmera por vezes flutuante, de uns zooms delicados – contradizendo a própria natureza do zoom –, de uma iluminação cuidadosa e expressiva mesmo em sua suavidade e toques de comédia irreverente – como o ponto fraco de Shen-Ran sendo um incontido entusiasmo perante seios grandes (sim, isso mesmo), cuja mera visão faz o seu nariz sangrar. É um filme com tanto coração que, no final, é difícil saber a qual deles o título realmente se refere. Outra coisa a se notar, aliás, é a imprevisibilidade da resolução; a narrativa segura o suspense até quase o final do filme – tanto que, dependendo do lado em que você firme a torcida, dá para dizer que, tanto quanto o personagem rejeitado, quem está passível de sair com o coração partido é o próprio espectador.