Cuidado com os olhos

Por Marcella Grecco

Cria Cuervos

No escuro, Ana (Ana Torrent) caminha em direção ao quarto de seu pai. Parada na porta, ela escuta então atentamente a ele e à amante, sussurrando juras de amor. Quando a mulher sai do quarto assustada, Ana entra e descobre que seu plano havia dado certo. Ela pega o copo em que colocara o veneno e vai para a cozinha. Após lavá-lo, ela o mistura com o restante da louça, de forma a não deixar vestígios. Durante o velório de seu pai, Ana, ao contrário de suas duas irmãs, nega-se a dar um beijo de adeus no morto. Ela não sente pena; está satisfeita. Indiferente aos olhares dos militares que ali estavam – seu pai também o era -, Ana sai da sala com uma frieza e segurança incompatíveis com a sua idade.

Ana é uma menina de oito anos que sofre com a perda da mãe e acredita ter matado o pai. Entre as salas escuras e pouco convidativas da grande casa em que vive com suas duas irmãs, a governanta e a tia, Ana perambula quieta e solitária. Apesar de conviver com outras pessoas, somente o fantasma de sua mãe é quem lhe dá conforto. Em grande parte das noites, Ana passa em claro, com um semblante de preocupação igualmente incompatível com a sua idade.

A menina guarda em segredo um terrível veneno, que na verdade não passa de um potinho cheio de bicarbonato de sódio. Foi assim que ela matou – ou acredita ter matado – seu pai. A certa altura, após passar um tempo contemplando a sua avó em uma cadeira de rodas, a menina a convida para olhar algumas fotos. Vendo o tédio e a tristeza que assolam a idosa, Ana liga uma música e olha novamente para ela, de forma a constatar algum resultado. Ao apontar para as fotografias Ana parece querer despertar saudades na avó, ou, ao menos, fazê-la sentir algo novamente; retirá-la daquele estado de apatia. Sem sucesso, a menina caminha em direção à idosa e pergunta: “Você quer morrer? Quer que eu te ajude a morrer?” Então ela sai da sala em busca do veneno, em uma atitude outra vez incompatível com a sua idade.

Com Cria Cuervos (Cría Cuervos, Espanha, 1976), Carlos Saura dá outro tom à infância. O filme é um retalho de memórias, comentadas pela própria Ana vinte anos mais velha, interpretada por Geraldine Chaplin. “Eu não consigo entender como algumas pessoas dizem que a infância é a época mais feliz da vida. Lembro-me de minha infância como um longo e interminável período triste, cheio de medo. Um medo do desconhecido.”, confessa olhando para a câmera. Existem atitudes incompatíveis com a idade? Por que a felicidade há de ser algo próprio da infância? Ana não é simplesmente segura ou fria, muito menos indiferente. Ela vê e entende os acontecimentos ao seu redor e, assim sendo, com o poder que lhe foi dado pela posse do “veneno”, Ana age, ainda que dentro dos limites da infância.

Como não pensar em morte? Tudo ao seu redor está sucumbindo, não somente a mãe, o pai, o animal de estimação, a avó e a tia, que ela também tenta matar. O casarão em que eles moram é escuro e com pouca mobília. A piscina está vazia. O quintal sujo e abandonado. As árvores do jardim desfolhadas. O silêncio massacrante que na casa predomina é ocasionalmente rompido pelo dedilhar do fantasma da mãe nas teclas de um antigo piano. Vez ou outra, de sua memória irrompem gritos e palavras de ofensa das brigas de antigamente. Seu pai traía a sua mãe e mantinha a casa e o casamento com a rigidez de um militar. Sua tia é disciplinada e antiquada, focada na organização da casa e em ter bons modos à mesa. Ainda assim, não é casada e vê as meninas como um grande empecilho. Ana culpa o pai pela morte de sua mãe, já que esta implorava pela sua atenção e pelo seu amor. A menina acredita que a mãe faleceu de desgosto e de solidão e tem medo de morrer pelo mesmo motivo.

A câmera de Carlos Saura flutua fantasmagoricamente por entre os cômodos da casa. Ela chega devagar, como que com receio de quebrar o silêncio. Na fotografia predomina a cor preta; o ambiente é fúnebre. Cria Cuervos foi filmado justamente no ano da morte de Francisco Franco, que mantinha o país sob uma terrível ditadura desde o final da Guerra Civil Espanhola. O filme de Carlos Saura é também uma grande alegoria ao fim do franquismo, denunciando, através da decadência desta família, a própria decadência do governo de até então. O pai de Ana, rígido militar, pode ser lido como o General Franco, governando aquela casa como se fosse a Espanha. A tia, como a Igreja Católica, antiquada e cheia de pudores, um dos sustentáculos da ditadura. Já as três meninas representam a esperança, sendo justamente com elas que o filme termina, caminhando sozinhas em direção à escola, ao som de uma música pop, detestada pela tia. Cría cuervos y te sacarán los ojos*, diz um antigo provérbio espanhol. Ao que tudo indica, os “corvos” saíram do ninho.

* Em português: cria corvos e eles lhe arrancarão os olhos.

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