Por Álvaro André Zeini Cruz
Há algo que concerne tanto ao cinema, quanto à adolescência, e que, talvez, John Hughes tenha sido um dos poucos a compreender (daí a potência de seu cinema): a questão da imagem como algo que atravessa esses dois universos. No caso de Hughes, ele os torna uma coisa só, esteja na função de diretor ou assinando apenas o roteiro. Os estereótipos – essas imagens lugares comuns – formam a primeira grande camada imagética de seu cinema: de Gatinhas e gatões (1984) à Alguém muito especial (1987), seus filmes colegiais são habitados por nerds, patricinhas e outsiders, sendo os últimos, geralmente, donos do protagonismo, afinal, Hughes se debruça sobre a adolescência pelo viés dos desajustados.
A imagem é vital para esses personagens. Em A garota de rosa-shocking (Pretty In Pink, EUA, 1986), primeiro filme da parceria entre Hughes e Howard Deutch (Hughes como roteirista, Deutch em sua estreia como diretor), Andie Walsh (Molly Ringwald) é uma garota pobre que confecciona as próprias roupas a partir de outras peças. A limitação financeira, portanto, não é um empecilho à vaidade, essa característica tão associada à adolescência. Muito pelo contrário, ela é instrumento para que a personagem construa uma imagem própria e única, personalidade que atrai os olhares de dois garotos ricos (um a quem ela despreza, outro por quem se apaixona) e os comentários maldosos das patricinhas da escola.
O conflito vem daí: se Andie está segura de sua imagem, Blane (Andrew McCarthy) logo percebe sua ingenuidade ao tentar aproximar a garota de seus amigos ricos – e a ameaça de ser segregado faz com que ele repense essa relação. A rejeição também se dá do lado contrário: apaixonado por Andie (e seu único amigo no ambiente escolar), Philip “Duckie” Dale (Jon Cryer) rompe com ela não só por conta do sentimento não correspondido, mas por não entender o encantamento da garota por um “playboy”. Sem seu oposto, que se afasta temendo perder o status, nem seu semelhante, é Andie quem acaba completamente isolada. As imagens, portanto, se instauram de duas maneiras: como forma de sobrevivência (se você está de acordo com as normas) ou como segregador social (caso você seja uma exceção à regra).
Em Alguém muito especial (Some kind of wonderful, 1987) a equação se inverte: Keith Nelson (Eric Stoltz), o garoto pobre que, obrigado pela pai, guarda cada centavo de seu trabalho como mecânico para pagar a faculdade, se apaixona pela popular Amanda Jones (Lea Thompson), que namora um dos playboyzinhos do colégio. Amanda, no entanto, é uma patricinha de araque: tão pobre quanto Keith, ela empresta brincos e outros acessórios das colegas ricas para compor uma farsa, e fica claro que só ascendeu socialmente graças a sua beleza. E, mais uma vez, estamos falando de imagem.
Como para Blane, o isolamento social também se torna uma questão para Amanda, que chega a ser ignorada pelas amigas. Em contraponto à ela, está a melhor amiga de Keith, Watts (Mary Stuart Masterson), cuja imagem é desorientadora: todos atribuem a ela uma suposta homossexualidade que não encontra motivos além da superficialidade (seu estilo meio punk). Afinal, se há algo que é de uma verdade desconcertante dentro do filme, é o amor que Watts sente por Keith. Para ele, no entanto, ela é menos do que uma imagem – é invisível, algo que se torna notável na cena em que Watts se declara num bar e Keith passa ileso à verdade desses sentimentos, afinal, está hipnotizado por Amanda.
O encantamento só se quebra quando Keith tem mais de uma confirmação de que está sendo usado por Amanda, que quer se livrar de seu ex-namorado. É então que ele decide dar o troco, ou seja, resolve também usá-la. Para sentir-se especial uma vez na vida (mesmo que seja sendo lembrado como o pobretão que saiu com a garota mais popular do colégio), Keith se aproveita de Amanda; não do que ela realmente é, mas do que ela representa. O que ele não imagina é que, por trás da carapaça, daquela imagem milimétricamente construída ao longo dos anos da high school, há uma garota que, como ele, deseja justamente a mesma coisa. E, pela primeira vez, ela se sente especial, ainda que acidentalmente, quando as imagens construídas se desfazem e os personagens revelam suas verdades durante o encontro. É quando Keith percebe que seu alguém especial não é aquela que estava diante dos olhares de todos (mas que ninguém via), mas a outra, que estava diante dos seus olhos, e ele também não via. O alguém especial de Keith era Watts, a essa altura vestida de chofer para abrilhantar a noite dos sonhos do amado. Mesmo não sendo ao lado dela.
A epifania do verdadeiro amor pode aparecer só no desfecho para Keith, mas para nós é definitiva desde o momento em que ele e Watts se beijam no meio do filme (ela se oferece para “testar” o beijo do amigo). Da conversa em plano e contraplano passa-se ao beijo e, a partir dele, a câmera inicia um travelling circular, que acentua o close nos rostos. Deutch parecia guardar o movimento de câmera para esse momento, bem como a mudança da trilha, cujas batidas se intensificam. É quando tudo se redesenha para tornar-se mágico (ainda que Keith não perceba). O corte nos tira do beijo e passa ao plano detalhe: a perna de Watts comprime ainda mais os corpos; a mão de Keith faz o mesmo logo em seguida. Tem-se aí uma característica vital ao cinema de Hughes e Deutch: a atenção a esses pequenos gestos, aos detalhes das mãos e dos olhares. Imagens que ali revelam verdades como nenhuma outra.
Mas as imagens de Hughes e Deutch enganam: parecem sólidas, cristalizadas, mas, na verdade, são voláteis, se modificam. É recorrente nos filmes a sequência da transformação: enquanto Keith e Amanda se arrumam para o encontro, Watts deixa seu visual roqueiro desleixado para vestir o uniforme de motorista do casal (é ela, portanto, quem mais abdica de sua imagem). Em A garota de rosa-shocking, vemos Andie transformar dois vestidos cor-de-rosa em um só, para aparecer deslumbrante dentro dele logo em seguida. Ela não é mera réplica como muitos e muitas são no universo colegial; tal qual o vestido, é uma colagem e é isso que a destaca. Em Clube dos cinco, a transformação não é visual (com exceção da garota Freak): os personagens continuam presos às imagens estereotipadas, mas descobrimos através das interações que o Atleta (Emilio Estevez) playboy, por exemplo, não é um completo jerk, nem a Patricinha (Molly Ringwald) uma mimada esnobe. Contudo, todas as verdades são trazidas à tona pelo Outsider, que se instaura naquela detenção como uma figura anárquica para, aos poucos, revelar que mesmo resguardados em seus estereótipos – Atleta, Patricinha, Nerd, Freak – os outros quatro compartilham daquilo que ele assumidamente é. Todos são outsiders, ou como diz o personagem de Estevez em determinado ponto: “Todos somos bem bizarros. Alguns de nós são melhores escondendo, só isso”.
É possível ir além: as imagens de Hughes contrapõem esses outsiders a um establishment, constituído pelo mundo adulto, que ou é patético e desconectado (como os pais enganados em Curtindo a vida adoidado), ou apresenta relações ruidosas (Gatinhas e gatões, A garota de rosa-shocking, Alguém muito especial), ou reverbera através de seus herdeiros, os riquinhos da escola, que transportam para dentro da instituição as relações de poder do mundo lá fora (e essas são as figuras mais patéticas retratadas por Hughes). Em A garota de rosa-shocking há o pai afetivo mas que falha como figura paterna no papel de um cuidador, já que é Andie a “adulta” da casa. Em Alguém muito especial há o pai zeloso, mas que mata a juventude do filho ao impor uma excessiva preocupação com o futuro (que ele, como pai, não teve).
No entanto, nenhuma das cenas dos filmes dirigidos por Deutch têm a potência dramática de uma específica de Clube dos cinco, dirigido por Hughes (ainda que, como diretor, Deutch tenda a ser mais melodramático do que Hughes): sentados, os personagens conversam até que o Atleta vivido por Estevez conta o motivo que o levara à detenção – um bullying violento praticado contra um dos nerds. O personagem então elucubra o porque dessa violência; a câmera faz um travelling circular para captar cada nuance dessa especulação, o fundo tem profundidade de campo nula para que nada nos tire do drama do texto e da interpretação. O personagem encontra sua resposta: fez o que fez pelo pai. “Ele é como uma máquina sem cérebro com quem não consigo me relacionar”, diz o garoto que, em seguida, imita o pai “Você tem que ser o número um. Não vou tolerar nenhum perdedor nesta família”. O Outsider diz que os pais de ambos deveriam sair juntos para jogar boliche. O Nerd então relata o mesmo tipo de cobrança, mas por conta das notas. Mais adiante, o Atleta se pergunta: “Vamos ser como nossos pais?”. A Patricinha diz que jamais e ganha um olhar aliviado do Outsider. A Freak, porém, pontua: “É inevitável. Apenas acontece. Quando você cresce, seu coração morre”.
Talvez esse seja o grande confronto imagético do cinema de Hughes: o embate entre pais e filhos, entre o establishment dos adultos em seu american way of life e esses garotos que vivem às margens (a adolescência para Hughes é uma experiência marginal). Os pais pouco aparecem, mas seus resquícios estão ali deixados nas cenas, nas vidas dos filhos. São heranças que podem levar à maturidade, como no caso de Andie em A garota de rosa-shocking, à libertação, como em Curtindo a vida adoidado e Mulher nota mil (Weird Science, 1985), mas podem também levar à iminência de uma tragédia, como a tentativa de suicídio do Nerd em Clube dos cinco. Legados que interferem diretamente nessa dicotomia entre imagem e verdade. Entretanto, o mundo adulto se delimita a ser não mais que uma pista: o fascínio de Hughes é pelos adolescentes, talvez porque vislumbre ali uma beleza ímpar, que contamina toda sua construção narrativa. Se os diálogos são em sua maioria filmados na simplicidade dos planos e contraplanos é porque a transparência da técnica é adequada para que essa essência se revele sem nenhum empecilho. Ou seja, as imagens não podem ser turvas, nem estar encobertas, elas precisam ser diretas para que atinjam sua potência, sua beleza, que para Hughes, está no ímpeto que só a adolescência traz. Ímpeto que está no nonsense da dança de Jon Cryer em A garota de rosa-shocking, nas corridas pelos corredores da escola em Clube dos cinco, em Ferris Bueller cantando Twist and shout na clássica cena do desfile em Curtindo a vida adoidado; cenas que trazem comportamentos fora do padrão. Hughes e Deutch, no fundo, são enganadores, porque não se interessam de fato pelas réplicas, simulacros e padrões; se usam estereótipos, é para poderem descortiná-los, colocá-los por terra em busca de uma verdade. E sempre que essa verdade aparece, a câmera está ali, pronta para captar os detalhes dos corpos e olhares que se encontram e desencontram. Enganadores em busca da verdade – está aí uma boa definição para a profissão de cineasta, coisa que Hughes e Deutch são. E dos grandes!