Por Álvaro André Zeini Cruz
Bom dia (Ohayô, Japão, 1959) e A chegada do outono (Aki Tachino, Japão, 1960) são corpos estranhos nas trajetórias de seus respectivos realizadores – Yasujiro Ozu e Mikio Naruse. E por um mesmo motivo: ambos têm a infância como ponto de vista, sendo que tanto a filmografia de Ozu quanto a de Naruse sempre privilegiariam os conflitos adultos, sobretudo aqueles decorrentes da instituição do casamento.
Não que esses conflitos estejam ausentes. Pelo contrário, o mundo adulto continua sendo gerador de normas e tradições que, em algum momento, serão colocadas em xeque; mas é a infância quem agora dialoga com as regras e engessamentos que esse mundo impõe. É ela quem irá questioná-las.
Em Bom dia, a austeridade dada à educação e à infância é invadida por uma novidade tecnológica: a televisão. Os garotos da vizinhança já não querem mais saber de ficarem em suas casas; sempre que possível, escapolem para a casa do jovem casal de vizinhos que tem um aparelho (casal que é mal visto pelos outros por “passar o dia de pijamas”). Para pressionarem o pai a comprar um aparelho próprio, dois irmãos fazem um voto de silêncio, brincadeira infantil que, no entanto, irá atingir em cheio o mundo adulto. Isso porque o ato de pararem de cumprimentar os demais moradores coincidentemente alinha-se à uma série de fuxicos e picuinhas que tomam a vizinhança. As crianças justificam: acham perda de tempo as conversas adultas vazias – “bom dia”, “boa tarde”, “o tempo está bom”. O professor de inglês justifica tais cumprimentos como lubrificantes do mundo; outra personagem rebate dizendo que os usa o tempo todo para vender carros. O diálogo chega a uma constatação importante: as coisas importantes são difíceis de se dizer; as insignificantes são fáceis.
As crianças detectam essa superficialidade de um mundo restrito, termo aqui não usado à toa: os planos rigorosos de Ozu delimitam o microcosmo lacrado que é aquela vizinhança, de onde se vê muito das outras casas através das janelas, mas que cujo mundo é apenas um vislumbre que se tem através daquele vão que Ozu filma sistematicamente entre as construções. A televisão é o recurso usado pelas crianças para sair dali. Não se desvencilha da superficialidade, mas é outra, externa, não mais a daquela vizinhança.
Em A chegada do outono, a infância ganha o mundo (ou seria ele enfiado goela abaixo?). O garoto Hideo se muda para Tóquio com a mãe, mas é deixado para trás quando esta se apaixona. Sob os cuidados do tio, ele perambula pela metrópole que cresce e se moderniza – e Naruse capta a modernidade do espaço urbano como poucas vezes se viu em sua filmografia. A trama repousa durante boa parte nas peripécias da infância, principalmente a partir do momento em que Hideo faz amizade com Junko, garotinha esperta que, filha bastarda, é ignorada pelos irmãos. Duas almas solitárias que se encontram numa cidade que se reconfigura de forma impiedosa.
A explosão urbana é visível no contraste entre os cenários: Hideo transita entre o pequeno comércio familiar e as escadas rolantes de um shopping center. É no topo deste último edifício que ele e Junko sobem para encarar a cidade e para verem, para além dela, o oceano, refúgio esse que será responsável por separá-los. Pois a história de Hideo é de abandono: primeiro a mãe, depois o primo mais velho que o troca por uma saída com uma garota, e, por fim, Junko, que é levada após sua ida com Hideo até o mar.
As filmografias de Ozu e Naruse tratam de temáticas semelhantes e se aproximam aqui nesses expoentes sobre a infância. Há, contudo, pequenas marcas capazes de diferenciá-los. A câmera de Ozu é quase sempre frontal, próxima, mas não hiperdramatiza, nem desdramatiza; a imagem é o que é e ponto. Naruse não teme distanciar-se, ainda que jamais saia do melodrama. No fundo, os movimentos são opostos: Ozu pega o cotidiano e o torce, espreme, até que dali tire algum sumo, nem que sejam algumas gotas de otimismo; Naruse pega o dia-a-dia e o estica até que ele se esgarce, e dos intervalos desse esgarçamento brota o pessimismo, a dura realidade dos dias. Ao final de Bom dia, o pai cede, as crianças alegram-se, mas a TV continua encaixotada no meio corredor, mera desculpa para que essas vozes ignoradas se fizessem ouvir. A infância é entendida por Ozu como um enunciador potente, capaz de sublinhar algo até então inaudível e muito mais pertinente do que qualquer enunciado adulto: a consciência de que os tempos e as relações mudaram, e agora, não há mais palavras a perder. A infância de Naruse grita sem ser ouvida. Tal voracidade está no plano final de A chegada do outono: é a imagem de Hideo novamente no topo do prédio a encarar a cidade. Desta vez sem a companhia de Junko, sem a esperança do oceano que se desdobra após os prédios. É ele contra a cidade, o mundo. Sozinho.