Por Álvaro André Zeini Cruz
(contém spoilers)
A certo altura de Mesmo se nada der certo (Begin again, EUA, 2013), Dan (Mark Ruffalo) e Gretta (Keira Knightley) andam por Nova Iorque alheios aos sons da metrópole – eles compartilham uma trilha sonora através de um divisor de fones de ouvido ligado ao smartphone de Gretta. Ela então opta por uma música correndo o risco – como ela mesma diz – de ser brega: “As time goes by”, de Dooley Wilson, conhecida canção-tema de “Casablanca”. Ao ouvir a música, Dan olha ao redor e diz que o cinema, quando aliado à música, têm a magia de encher de beleza as coisas mais ordinárias, como os vagantes urbanos que eles encaram pela rua. E como espectadores desta cena aparentemente banal, mas que cujos sentimentos estão ali latentes, somos capazes de compreender a pontuação do personagem.
A fala de Dan é, na verdade, um entendimento vital aos dois longas de John Carney. Em Apenas uma vez (Once, 2006), a música é o entrelaçamento entre duas figuras solitárias; aqui, o enlace entre dois desajustados. Dan surge como a caricatura do beberrão – outrora homem de sucesso – que se deixou abater pelo azar. A princípio, ele é quase que um corpo estranho ao filme, que vai se readequar a partir do encontro com Gretta. Ela, por sua vez, é a outsider recém-chegada, cujo único elo com NY é o namorado que está a poucos passos da fama (e que, quando chega lá, a deixa). A música é quase sempre a catarse que pontua os encontros entre os dois; uma catarse que se potencializa quando instaurada numa história calcada no minimalismo das ações e dos gestos.
Carney usa da pouco discreta mise-en-scène da câmera na mão (já presente em Apenas uma vez) para criar uma flexibilidade natural, que faz com que o olhar se desvencilhe sem nenhum embaraço de um ponto a outro – dos personagens à cidade ou a um objeto de cena importante, como o divisor de fones pendurado no retrovisor. A mobilidade dessa câmera também corrobora outra característica marcante: a capacidade de encantamento. Um encantamento presente desde o começo do filme, quando Keira Knightley se apresenta num palco; o público na diegése daquele espaço pode até ignorá-la (sintoma de uma certa “cegueira” que acomete nossos tempos), mas ela tem a atenção completa da câmera, que circunda seu corpo na tentativa de registrá-lo na completude de sua graça. É uma abertura forte, onde Knightley se coloca como figura hipnótica a ponto de só permitir que a câmera se desvencilhe quando a música acaba. E quando isso ocorre, lá está o personagem de Ruffalo, estupefato em meio à plateia insensível, partilhando do mesmo encantamento que nós sentimos, graças ao olhar da câmera (e, mais adiante, revemos a cena sob outra perspectiva; desta vez assistindo esse processo de sedução do personagem).
As apresentações musicais são momentos ápices que a câmera de Carney vai registrar, e são propositalmente colocadas em cenários urbanos para tocar algo que concerne ao filme: a arte vive também do caos, do descontrole. No caso de Gretta, ela é o diferencial, o que distancia sua música-arte da música-produto asséptica de seu ex-namorado. Mas esses momentos musicais só existem para que algo menor, mas mais potente ocorra – como o olhar de profundo fascínio de Dan para Gretta no primeiro encontro, o desconcerto diante do belo que brota inesperadamente do cotidiano. Esse interesse pelas trocas de olhares, pelas mínimas oscilações da voz, pelo toque das mãos, algo que poucos cineastas no cinema americano atual se preocupam em registrar com a devida importância (Eastwood e Gray entre eles) é resgatado do filme anterior e aparece neste de forma contundente. Quando o namorado em carreira ascendente mostra sua nova música de trabalho para Gretta, a câmera se ocupa em registrar a mudança daquele olhar. Carney dispensa a dramatização do close; o plano médio é suficiente para mostrar o desapontamento da moça, que compreende que foi trocada.
Keira Knightley surge com uma das mais potentes interpretações deste ano. A dor de sua personagem é comum, cotidiana, mas não por isso menos esmagadora (vide a cena da mensagem de voz). No entanto, é construída com certa leveza, como se ela incorporasse outras tantas mocinhas românticas da história do cinema. Não poderia ser diferente; o filme tem consciência do quão indispensável é Knightley para sua força e sobrevivência, já que traz à tona algo também intrínseco à história do cinema – o fascínio pela beleza feminina, aqui concatenado na atriz. A compreensão que Gretta chega ao final pode ser menos recorrente nas comédias românticas musicais, mas parece cara às histórias de Carney, que pela segunda vez, gira em torno de um personagem “de passagem”, uma dessas figuras que entram nas vidas das outras, passam e vão embora. Em Apenas uma vez isso é quase trágico, já que da transformação, volta-se à solidão. Aqui não: Gretta é elemento restaurador para Dan, ainda que os caminhos deles não estejam para sempre entrecruzados, ainda que seja impossível para ela voltar ao passado. Termina sozinha, mas plena, andando de bicicleta pela cidade. Contudo, não cabe mais um plano médio ou mais aberto (nem a cidade nos interessa mais!). A imagem final não poderia ser outra: sobre as luzes urbanas difusas, o sorriso desconcertante de Keira Knightley se impõe sublinhado pela força do close up e pontua o filme. Com graça e beleza.