Por Álvaro André Zeini Cruz
(este texto aborda apenas a primeira temporada dos animes em questão)
Moritaka Mashiro vê seu antigo sonho de ser mangaká – postergado pela desilusão e morte do tio que seguia na profissão – ser reavivado quando Akito Takagi, o nerd da sala, lhe propõe um acordo: trabalharem juntos para realizarem esse sonho em comum. A parceria é mais que conveniente: Takagi escreve, mas não desenha; Mashiro desenha, mas não escreve (ao menos, não tão bem quanto Takagi) – a arte (e não entraremos no mérito se mangás são ou não arte, já que, ao tomar a primeira via, o anime entende esta questão como superada) nasce, portanto, do esforço coletivo, da segmentação, da doação daquilo que cada um tem de melhor.
Uma cena do episódio piloto é indispensável à trama e ao tema pulsante em Bakuman (Bakuman, Japão, 2010-2013), cujas três temporadas foram adaptadas do mangá de Tsugumi Ohba e Takeshi Obata: aquela em Takagi e Mashiro vão à casa da paixão platônica do segundo, Miho Azuki, cujo sonho é tornar-se uma dubladora. Mashiro está incomodado; acha que Takagi vai se declarar à Azuki. O amigo descarta essa hipótese – “eu estou apaixonado por sua arte e gosto de você” (ou seja, não magoaria Mashiro). Diante da casa de Azuki, os sintomas da adolescência borbulham na insegurança de tocar ou não o interfone – e o que dizer em seguida, – iniciativa que é tomada por Takagi. Azuki então surge à porta e cora quando percebe Mashiro. Takagi finalmente revela sua intenção: convida a garota para dublar a heroína da série produzida pelos dois, quando esta se tornar um anime. Gaguejante diante do amor da adolescência, Mashiro explica a dinâmica do trabalho: “eu vou desenhar e este cara aqui fará a história”. E, então, o rosto de Azuki se ilumina: “Eu sabia! Incrível! Desse jeito vai dar certo!”, ela diz. A cena, singela, se encaminha para um pacto “vomitado” por Mashiro – quando seus sonhos se realizarem, ele e Azuki poderão se casar. Azuki instantaneamente volta a corar e dispara para dentro da casa, mas do interfone, aceita a proposta de Mashiro, sob uma condição: irão se concentrar em seus sonhos e, até que se realizem, falarão apenas por mensagens. E, assim, se estabelece uma relação ímpar que resgata o romance romântico, algo que será o tempo todo contraposto à contemporaneidade veloz e pragmática durante a série.
Ainda que a relação de Mashiro e Azuki estabeleça essa meta/deadline a ser atingida, é sobre Mashiro e Takagi que recai o protagonismo. A conexão entre os dois é complexa: Mashiro é grato a Takagi por ele ter despertado seu sonho adormecido. Mas esse sonho, agora retomado e potencializado pelo amor à Azuki, beira à obsessão para Mashiro, algo que, muitas vezes, Takagi tem dificuldade de acompanhar. É na manutenção do equilíbrio da dupla que atua a compreensiva (e hiperativa) Kaya Miyoshi, melhor amiga da Azuki (e principal incentivadora do romance entre ela e Mashiro, ainda que não compreenda as cláusulas desse pacto) e namorada de Takagi. É ela quem quase sempre apazigua as coisas quando a relação dos protagonistas está prestes a desandar; ainda que isso, geralmente, custe-lhe também algum sacrifício, Miyoshi, bem como Mashiro e Takagi, entende que a dedicação é o caminho para os sonhos – ao menos quando não se é um gênio.
A questão da genialidade é recorrente e perseguida por diversos personagens na primeira temporada. Koji Makaino é um cantor pop que quer se lançar em diversas frentes artísticas, ainda que seu talento como mangaká seja duvidoso; já a autoconfiante e blasé Ko Aoki crê piamente que é superior aos demais colegas mangakás – e sua associação desconexa com o inseguro Takuro Nakai forma um contraponto interessante com o alinhamento da dupla protagonista. Todos querem ser Eiji Nizuma, personagem-chave para o anime, adolescente gênio que escreve e desenha seus mangás com invejável qualidade e rapidez, o que faz com que sua história seja serializada.
A importância de Nizuma na trama é bem ilustrada no 15º episódio. Mashiro e Takagi recebem conselhos de seu editor, que defende que a história de um mangá deve ser milimétricamente calculada (ele solta coisas como “é bom que tenha uma mocinha bonita e um inimigo carismático”). O diálogo, no entanto, é abruptamente cortado por Nizuma, que, com seu jeito excêntrico (característica recorrente no imaginário da genialidade) e engraçado, berra: “Apenas escreva sem pensar!”. Contrasta-se, portanto, duas linhas regimentais: de um lado, Mashiro e Takagi, cujo trabalho é feito de paixão e suor, do outro, Nizuma, o garoto que tem um dom que lhe abre a possibilidade de criar sem grandes racionalizações, como se a única e mais natural possibilidade para suas histórias fosse mesmo a de emergir, vir à tona, como o próprio personagem pontua: “os personagens que eu gosto se movimentam sozinhos! Fico tão ansioso para ver como eles vão se mover que não consigo parar!”.
Contudo, ainda que nenhum dos colegas mangakás esteja a sua altura, Nizuma jamais subestima seus concorrentes; pelo contrário, torce por eles, sobretudo para Mashiro e Takagi, pois vê na competição uma oportunidade de sair de certa estagnação confortável proporcionada pelo dom, enxerga uma chance manter-se vivo, pulsante em sua arte. Crê, portanto, que a dicotomia paixão-dedicação possa se equiparar ou até mesmo suplantar esse dom e é essa a trajetória que se delineia para Mashiro e Takagi: para além do sucesso e do pacto com Azuki, há a perspectiva de se superar ou não um gênio.
Bakuman dialoga bem com as de outro anime contemporâneo, Kuroko no basquete (Kuroko no basuke, Japão, 2012-2014), sobretudo se pensado a partir das relações de protagonismo, que aqui recai sobre Kuroko Tetsuya e Kagami Taiga. Ambos são novatos no time de basquete de uma escola inaugurada há pouco; Kagami é um jogador tão talentoso quanto impetuoso, mas não é páreo para enfrentar a chamada “geração dos milagres”, jogadores com talentos excepcionais que, outrora parte do mesmo time, se separaram em diferentes escolas. Vencer a tal geração se torna uma obsessão para Kagami, que, inesperadamente, encontra no tímido e franzino Kuroko o parceiro ideal: revela-se então que o próprio Kuroko fizera parte da geração dos milagres, sendo conhecido como o jogador fantasma.
O talento de Kuroko em quadra é diminuir sua presença até passar desapercebido. Isso possibilita que ele tome a bola dos adversários e passe para que seus companheiros finalizem a jogada, e é essa a dinâmica de sua parceria com Kagami. Num diálogo entre os dois, Kuroko pontua que para brilhar ainda mais, a luz precisa de uma sombra, e ele, Kuroko, se propõe a ser a sombra de Kagami. Ainda que a relação pareça à primeira vista desigual, ambos só conseguem ser bem-sucedidos quando juntos – grande e chamativo, Kagami não consegue se movimentar em quadra sem ser cercado, o que o impossibilita de roubar a bola; já Kuroko, é incapaz de acertar uma bola na cesta. Como em Bakuman, o sucesso depende da parceria, onde a fraqueza de um é suprida pela presença do outro.
As semelhanças se limitam a esse eixo temático; estilisticamente as séries são bastante distintas. Bakuman, dirigida por Kenichi Kasai e Noriaki Akitaya, se enquadra num gênero que dentro do universo dos animes é chamado de slice of life e que se ocupa em retratar tramas cotidianas buscando um realismo rítmico inclusive: não à toa, é, muitas vezes, lento e minimalista, com sua trama focada no cotidiano de trabalho dos protagonistas, entrecortado pela rotina escolar e pelas relações amorosas/familiares. Kuroko, dirigido por Shunsuke Tada adaptado do mangá de Tadatoshi Fujimaki, por sua vez, está entre o chamado shounen (voltado ao público masculino jovem) e seinen (que engloba também o público masculino adulto), se passa no universo do esporte e, portanto, demanda uma narrativa mais impactante: muitas vezes um arco de episódios desenvolve a adrenalina de uma única partida. Isso se reflete também no traço do anime, reconhecidamente mais agressivo (os sombreamentos são feitos através de linhas que cortam os corpos).
O trabalho, o esforço e a dedicação são valores enraizados na cultura japonesa e se refletem com aproximações e distanciamentos nesses dois animes: se aproximam na estruturação da relação entre os protagonistas; se afastam pela distinção dos universos. A ideia do sonho está também presente em ambos, mas em Kuroko é mais simples: o sonho de Kagami é derrotar a “geração dos milagres”. Ponto. Kuroko torna-se figura essencial para a realização desse sonho, mas sequer sabemos se ele o compartilha – bem verdade, fica a impressão de que Kuroko quer apenas fazer parte de alguma coisa e o basquete assume esse objetivo. Em Bakuman, os sonhos são mais complexos: há o romance deslocado de seu tempo (afinal, o namoro de Mashiro e Miha é pouco convencional para os dias de hoje, o que causa um contraponto interessante com o outro casal) e envolvido num pacto, há o desejo de ver o mangá serializado em anime, a promessa de alcançar Nizuma, e, por fim, os sonhos que têm que ir para o papel. A transposição das ideias em desenhos é que nos faz voltar ao cerne temático: para Nizuma, a ideia, o desenho, a história, enfim, a arte, é quase um vômito sobre o qual ele não tem o menor controle, simplesmente sai, implacável. Para Mashiro e Takagi, implacável é a paixão, o desejo, o sonho. É o que torna eles próprios implacáveis, incansáveis. Mashiro sabe que tal determinação pode ser fatal; seu tio morrera ao se entregar ao trabalho e é a partir dele que o sonho assume seu aspecto trágico. Há, no entanto, algo determinante, ainda que singelo, para que o rumo seja outro: no fundo, Bakuman respira e sobrevive desse encontro em extinção, dessa sintonia artística rara e invejável. Se considerarmos a ligação entre arte e alma, podemos dizer que é um encontro entre duas almas, ainda que não seja romântico ou sexual, conexões mais valorizadas nos dias de hoje. Nesse sentido, talvez a imagem mais comovente da primeira temporada seja uma das mais tolas e banais: Mashiro e Takagi brincam de realizarem a fusão, tal qual os guerreiros faziam para formarem os Super Saiyajins em Dragon Ball. Dado o caráter realista da trama (ao contrário de Dragon Ball), a fusão física não se concretiza, mas é consumada na arte: nos mangás, assinam como Ashirogi Muto, um anagrama de seus nomes.