Por Marcella Grecco
Camiel Borgman (Jan Bijvoet) é um homem que vive sob a terra. Logo na primeira sequência, vemos sua casa subterrânea ser destruída e invadida enquanto um padre armado espera ansioso pela captura do homem que vemos fugir por um túnel até chegar à superfície. Em seguida, Borgman corre para alarmar seus companheiros, também moradores subterrâneos, de que o padre os havia descoberto.
Da floresta em que vivia, Borgman logo chega a um bairro de classe média alta holandês. Sujo, com os cabelos compridos e a barba por fazer, Borgman pergunta para o morador de uma enorme casa se poderia tomar um banho. Da negativa, ele chama a atenção do morador dizendo que conhecia sua esposa. Marina (Hadewych Minis) nega conhecer o pedinte e, exasperado pela insistência e indiscrição, Richard (Jeroen Perceval) empurra-o no chão e o golpeia até perder a consciência.
Marina, assustada, fica desolada com a reação do marido, que nunca se demonstrara tão violento. Quando Richard sai para trabalhar e Borgman volta a pedir por um banho – dessa vez a ela, – o mendigo ganha um com direito à banheira, além de uma taça de vinho e de um jantar. Alegando estar completamente machucado, ele pede também para passar a noite por lá. Marina, sem contar nada à Richard, coloca-o para dormir na casa de hóspedes. Daí em diante, a vida da família passa por uma série de transformações.
Hábil e capcioso, Borgman não se contenta com a casa de hóspedes e com o único banho oferecido. Ele passa, então, a participar do ambiente familiar, mas, somente se deixando ser visto pelas crianças, pela babá e por Marina. Borgman se demonstra uma pessoa amável e atenciosa, o que faz com que aquelas pessoas gostem dele e de sua presença. Ele se utiliza das palavras para seduzir e conseguir o que quer, ao contrário de Richard, que logo passa a ser tratado com desdém por Marina.
A intenção de Borgman é causar conflitos, desavenças. Desde a primeira ocasião, quando faz Richard sentir ciúmes mentindo ao dizer que conhecia sua esposa, os trabalhos começam a ser feitos. Apesar da sujeira e da aparência nada convidativa, Borgman veste terno, assim como os outros habitantes do subterrâneo. Nitidamente ali a negócios, Borgman faz um acordo com Marina e passa a trabalhar como jardineiro na casa, depois de cortar os cabelos, fazer a barba e passar por uma entrevista com Richard, que não reconhece o pedinte da outrora.
Oficialmente infiltrado na família, após mandar assassinar o antigo jardineiro, Borgman manipula os moradores colocando-os uns contra os outros. À noite, antes das crianças dormirem, ele entra sorrateiro para contar histórias de teores não muito agradáveis, por exemplo, sobre bestas e demônios ou sobre como Jesus era entediante e só pensava em si. Surpresa causa ao espectador descobrir que, durante a noite, Borgman se diverte também com Marina sem que ela perceba. Vez ou outra, a câmera o flagra de cócoras e sem roupas sobre o peito da mulher que tem seus sonhos invadidos. Borgman não somente pode ver o que Marina sonha, como parece exercer influências sobre os sonhos, fazendo-a imaginar determinadas coisas e acordar cada dia mais irritada com o marido.
Logo percebemos que o pedinte, agora jardineiro, não é uma pessoa comum. Ele seduz Marina, a babá e as crianças, mas, ao contrário do que pudéssemos imaginar, ele não as seduz com intuito sexual já que, conforme mencionamos, Borgman está naquela residência a negócios. Logo que é contratado como jardineiro ele chama Ludwig (interpretado pelo diretor) e Pascal (Tom Dewispelaere), também habitantes do subterrâneo, para ajudar na reparação do jardim. Bem vestidos, os três passam o dia inteiro cavando e interagindo com as crianças, a babá e Marina, que, a essa altura, já são espécies de zumbis seduzidas pelos mestres.
Borgman (Borgman, Holanda, 2013) é um filme que fala sobre o mal, mas não o mal que estamos acostumados a ver em muitos filmes mais comerciais. Nessa mistura de drama com terror psicológico, o mal bate à porta e pede licença para entrar. Não nos referimos a monstros ou a espíritos e, sim, a uma pessoa atenciosa que seduz e manipula para conseguir o que quer, sendo impossível não lembrar dos “graciosos” jovens de Violência Gratuita, de Michael Haneke.
Apesar da referência, no filme de Haneke os garotos se divertem com o sofrimento da família e justamente a diversão é a finalidade da violência, mas, no filme do holandês Alex van Warmerdam, não parece haver prazer na maldade, até porque, para os que a estão praticando, ela não é reconhecida como tal. Borgman e seus companheiros trabalham de terno e gravata; apáticos, fazem o serviço como se estivessem sobre a terra somente para selecionar algumas pessoas para levarem ao subterrâneo. São espécies de burocratas do inferno – a palavra deriva do latim infernum, que veio do grego, averno, e significa mundo inferior, subterrâneo – que necessitam eliminar os que atrapalham a descida dos selecionados.
Alex van Warmerdam leva o espectador, no princípio, a sentir raiva de Richard e piedade de Borgman. Chegamos até mesmo a ficar em dúvidas se Marina conhecia ou não o pedinte, visto a forma que age com o desconhecido. No entanto, na primeira noite em que vemos Borgman nu sentado no peito da mulher, passamos a suspeitar que aquele não era um mendigo qualquer; e essas suspeitas são satisfeitas com o desenrolar da narrativa. “E eles desceram sob a terra, para fortalecerem suas classes”, com esse versículo começa o filme e, cumprida a missão, ele termina, com Marina, a babá e as crianças sendo levadas para o subterrâneo de forma a fortalecerem e garantirem vida ao mundo inferior.