Alucinações inocentes

Por Gabriel Carneiro

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Segundo longa-metragem de Djalma Limongi Batista, Brasa Adormecida (Brasil, 1986) parte de uma homenagem ao filme de Humberto Mauro, Brasa Dormida (1928), para criar uma fábula sobre o relacionamento amoroso entre três primos, Bebel (Maitê Proença), Ticão (Edson Celulari) e Toni (Paulo Cesar Grande). Passado numa fazenda de classe alta no interior de São Paulo, na virada dos anos 1950 para os 1960, o longa acompanha o casamento arranjado entre Bebel e Toni e as tentativas de Ticão de miná-lo. Embebido na atmosfera de comédias juvenis e musicais norte-americanos dos anos 50 e 60, Brasa Adormecida busca no humor ingênuo a sua essência.

Esse humor é trabalhado em especial no caráter lúdico do filme, aspecto extrapolado em relação ao filme anterior – e sucesso – Asa Branca, um sonho brasileiro (1981), sobre a ascensão de um jogador de futebol. Se o período em que o longa se passa já emula a ideia de inocência – eram tempos do desenvolvimentismo de JK, antes da repressão militar -, é quando, logo no começo do filme, Ticão, um adulto endiabrado, joga cobras em cima do juiz de paz para postergar o casamento, que a tônica do humor se define.

Outra artimanha de Ticão leva o longa para uma anarquia narrativa, ainda calcada no humor ingênuo. É quando pede a um pai de santo uma poção, que o primo mistura à comida, deixando todos fora de si. Brasa Adormecida, assim, passa a acompanhar as desventuras dos convidados pela fazenda dentro de um transe mental desordenada, entre encontros e desencontros com outros personagens – permitindo um raro e interessante uso de efeitos especiais no cinema brasileiro. Entre os delírios, há, por exemplo, o bispo que vê passarinhos de desenho animado; uma das primas que vê um saci; a mãe de Bebel que se cansa de tocar piano, sendo que suas luvas continuam o trabalho; a tia que se vê dentro do Brasa Dormida; a tia Cocota que não percebe que está descendo a ribanceira em sua cadeira de rodas sem ninguém a segurando e cai de cabeça no lago; um sujeito se traja de mergulhador e passeia pela fazenda a esmo, etc.

Tais situações, sempre precedidas por um barulho de borbulhar e uma expressão de loucura, ajudam a inserir o espectador no espaço da fantasia; aquilo é uma grande balbúrdia, uma traquinagem para com os demais personagens, mas sempre de maneira muito juvenil.

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O ponto alto dessa situação é a reunião de todos os primos na piscina. O primeiro efeito colateral da poção, neles, se dá num chá de panela. As meninas trocam animosidades enquanto os rapazes espiam – outra peça pregada por Ticão. Em determinado momento, as moças começam a se despir e os rapazes, alucinados, revelam sua presença. As primas decidem se vingar e se expõem em biquínis para mostrarem sua superioridade. Os primos pulam então pra piscina. Ousando em coreografias, Djalma cria uma mise-en-scène típica de musicais. Aparece, logo depois, Ticão em roupas de banhos e deixando todas as moças boquiabertas. Pouco depois emula os filmes de império romano, colocando seus atores em posições específicas no quadro como estátuas.

Ainda que trabalhe o humor ingênuo, há uma sensualidade latente entre o trio protagonista, sempre apresentado de modo implícito. A troca de olhares e o passeio da câmera, em visão subjetiva, pelos corpos semidespidos aponta o desejo sexual. Assim como o aspecto lúdico, o viés erótico também tem seu auge na piscina, em especial na cena em que Bebel emerge da água defronte a Ticão, filmada de modo a colocá-la entre as pernas dele.

Djalma, que afirma ter ousado pouco sexualmente devido ao medo tremendo da época acerca da Aids, radicalizaria, tanto nesse aspecto quanto na narrativa, em seu filme seguinte – e, por ora, derradeiro -, Bocage, o triunfo do amor (1997). Em seus filmes, a fantasia sempre se faz presente, ajudando a compor temas diversos com uma leveza que pouco se viu no cinema brasileiro. Brasa Adormecida, nesse quesito, é o seu imbatível.

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