A terra não é firme

Por Phillippe de C. T. Watanabe

Um filme falado

 

O aprendizado tradicional de História costuma nos deslocar para a Europa. Quando não o faz, normalmente, estudamos algo diretamente relacionado. Não há como negar a influência histórica europeia no mundo, assim como não é possível negar a visão eurocêntrica de História – fechando os olhos para as implícitas questões culturais – que ainda temos. A própria ideia de que se encontra lá o berço da civilização ocidental vai ao encontro disso, esquecendo-se e apagando a existência de outras possíveis civilizações e culturas – o que, não necessariamente, ocorreu somente na memória, mas também durante o processo de colonização. Manoel de Oliveira, em seu Um Filme Falado, porém, não parece ter a pretensão de contar a História do mundo, e, sim, propor uma conversa sobre as pessoas, o Mediterrâneo e os processos históricos.

Rosa Maria (Leonor Silveira) e Maria Joana (Filipa de Almeida), mãe e filha portuguesas, partem em uma viagem com destino a Mumbai. A ideia de Rosa é aproveitar as paradas do cruzeiro em diversos países para apresentar à sua filha os monumentos e lendas que compõem o imaginário europeu. A partir desse momento, já é possível perceber a conversa histórica proposta pelo filme, afinal, não é gratuita a proposta de colocar personagens portuguesas que se encaminham por mar à Índia. Em meio a tudo que é apresentado pela mãe, a criança começa a fazer perguntas sobre os humanos que, de início, parecendo inocentes, mostram-se complexas ao não serem plenamente respondidas pela protagonista. O filme, como um todo, pratica a mesma ação ao não buscar apresentar respostas fáceis.

Durante boa parte de Um Filme Falado, somos apresentados a essa carinhosa aula de História Europeia, mergulhando nela – como faz sugerir o repetido plano da proa do navio que se afunda no mar – cada vez mais. Quebra-se, então, essa estrutura e o enredo se desloca totalmente para o interior da embarcação. O comandante norte-americano John (John Malkovich) chama para se juntar a ele na mesa de jantar – sobre a qual será construída a segunda metade do filme – três famosas mulheres europeias: uma francesa, uma italiana e uma grega. Ali, conversam sobre assuntos diversos como união, filhos, carreira e sentimentos. Quando o ponto em questão se vira para a política, paira a impressão de estarmos diante de uma pequena reunião da União Europeia, o que torna irônico o fato do navio e dos destinos dos passageiros se encontrarem nas mãos de um norte-americano. Em um interessante momento, as personagens parecem tomar consciência de si mesmas como personagens; comentam, entre si, o quão estranho, mas funcional, é o fato de todos da mesa conseguirem se entender perfeitamente, mesmo com cada um falando em sua língua nativa. Na mesa ao fundo, encontram-se Rosa Maria e Maria Joana.

No jantar seguinte, quando mãe e filha se juntam à mesa do capitão, o filme se encaminha para o fim. A presença das duas cria uma rachadura. A protagonista e seu português não são compreendidos pelas mulheres ali presentes, somente pelo comandante, que aprendeu um pouco da língua após passar alguns anos no Brasil. Tal contexto parece apontar para a visão do diretor sobre a situação atual de seu país em relação ao mundo. A discussão sobre as diferentes línguas ali presentes retorna, porém, agora o inglês intermedia toda a comunicação. Nos momentos seguintes, repentinamente, um tripulante se aproxima do comandante John e passa uma informação – em uma cena que lembra muito o instante em que George W. Bush recebe a notícia do atentado de 11 de Setembro – que o faz abandonar a sala de jantar. Ao retornar, informa aos que se sentam com ele que há bombas no navio. A fuga dos passageiros em botes começa em seguida; mãe e filha, junto aos outros, buscam a saída, contudo, no meio do caminho, a criança se solta de Rosa Maria, que vai desesperadamente ao seu encontro, e retorna ao seu quarto para buscar a boneca que havia deixado sobre a cama. O olhar para trás é o suficiente para selar o destino de ambas. Todos os botes partiram.

Um Filme Falado foge do enredo comum e busca falar sobre a atualidade, sem apontar para um único ponto. Tenta o fazer da forma mais simples possível; os detalhes são a essência, pequenas atitudes dizem o que precisa ser dito. Como o comandante que, em um momento crítico, de puro desespero, ao pensar em saltar ao mar para tentar salvar a protagonista e sua filha, começa a se desfazer, botão a botão, peça a peça, do seu bem-alinhado uniforme. Ou como a boneca com hijab que desperta a simpatia da criança, faz com que esta volte para a buscar e, desse modo, acaba por condenar mãe e filha. Condena a menina por um passado distante que ela acabou de conhecer e por um mais próximo com o qual, por falta de tempo e por uma situação extrema, não haverá contato, conhecimento ou troca. . Ao fim, fica a dúvida se o exercício de esperança da nova geração, que se preocupa em olhar para o próximo, será o bastante ou se a explosão de desencontros e preconceitos consumirá tudo.

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