Eastwood, Spielberg e a alma

Por Álvaro André Zeini Cruz

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Já escrevi sobre Além da vida (Hereafter, EUA, 2010) aqui. Mas filmes não se esgotam, ainda mais um de tamanho quilate. Na trama multiplot dirigida por Clint Eastwood, um médium, uma jornalista e um garoto cruzam, cada um a sua maneira, o limiar entre a vida e a morte. A experiência de George (Matt Damon), ocorrida na infância, deu a ele o dom da mediunidade. Marie (Cécile de France), após sobreviver a um tsunami recente, não consegue se reconectar à rotina que levava até então. Marcus (George McLaren), por fim, tenta compreender a perda do irmão gêmeo com quem tinha uma forte ligação, e, para isso, busca respostas em diversas crenças e religiões, mas acaba sempre frustrado.

George considera seu dom uma maldição. Tem motivos para isso, já que quando revelado, esse dom desperta um interesse egoísta por parte daqueles que se aproximam (incluindo seu irmão), que passam a vê-lo como mero instrumento de onde se pode sugar um poder incomum. No entanto, esse fascínio se perde com certa recorrência, como ocorre com Melanie, seu interesse amoroso (Bryce Dallas-Howard, com seu olhar desconcertante pronto a ser captado em closes potentes). A tragédia de George, que ao longo dos anos encontrou no isolamento uma autoproteção (ele, por exemplo, é incapaz de escolher um parceiro no curso de culinária; a parceria tem que lhe ser designada) é contundente na cena em que Melanie descobre seu poder paranormal: ainda que tente se desvencilhar das investidas da moça, acaba se dando por vencido, e ao tocar-lhe as mãos – sua vidência se dá através do toque, – acessa o mais profundo trauma de Melanie, e assim, acaba por perdê-la.

Enquanto isso, Marie é afastada de seu programa de televisão; num meio veloz e globalizado como este, não há tempo para esperar que uma funcionária se cure de um trauma. Ela então dedica seu tempo a escrever um livro que, a priori, seria sobre política. Mas, para Marie, todo assunto se torna mundano após sua experiência de quase morte, e, ainda que a contragosto de seus editores, é sobre a finitude da vida que ela decide escrever. Finitude que nos é diariamente escancarada: tudo finda, do corpo à imagem (os outdoors de Marie que logo são substituídos quando ela é afastada do programa), ainda que evitemos encarar esse fato, nos concentrando nas superfícies do mundo.

São justamente essas superfícies que Eastwood vem criticar: relações, trabalhos, religiões, tudo é institucionalizado, funcionando sob os códigos voláteis da contemporaneidade. George é descartado quando acessa um segredo profundo; Marie, quando deixa de refletir sobre o que é público e urgente (a política e o agora) para pensar a partir de uma experiência privada (e ela pontua que o além da vida também é algo político); Marcus tem seu luto diariamente desrespeitado, seja pelo padre que o dispensa sem sequer confortá-lo, afinal, há outro corpo na “fila” para ser velado e cremado, seja pelos diversos charlatões que cruzam seu caminho e brincam com sua dor.

Poucas cenas atingem o tema tão diretamente quanto aquela em que Marcus está na sala de aula. Como sempre, ele usa o boné-amuleto herdado do irmão, objeto que, ao longo do filme, vemos ter um significado espiritual para o garoto. Próximo a ele, uma menina islâmica veste uma burca que lhe camufla os cabelos. Embora ambos tenham acessórios que lhes cubram a cabeça, a professora, no entanto, só censura Marcos – pede que ele não use o boné em sala de aula. A crítica é certeira: a institucionalização da fé é respeitada; a fé em sua significação mais pura e individual, não. Marcus é obrigado a abrir mão de seu objeto sagrado simplesmente porque este não fora legitimado, porque aparentemente é apenas um objeto ordinário. Não é. É a representação da fé em sua forma mais pessoal, força que emana daquilo que interessa ao filme de Eastwood: a alma.

A estrutura multiplot de Além da vida foi bastante criticada por não necessariamente seguir um crescendo que desemboca no esperado encontro catártico. Não, este não é um filme de Iñárritu. O encontro que acontece é intenso, mas não explosivo, talvez porque ele fosse de qualquer forma inevitável. George, Marie e Marcus se cruzam porque são almas que, ao sofrerem grandes traumas, ficam inviabilizadas de reintegrarem um mundo material, de superfícies, de ocorrências mesquinhas, efêmeras e voláteis. Buscam assim uma conexão entre si, entre aqueles que se compreendem, num mundo em que a compreensão é constantemente trocada pelo armazenamento de informação. O clímax do filme, de fato, não é explosivo, porque Eastwood entende que esse tipo de ligação humana rara, quando acontece, deve ser singela, como é a cena final: George avista Marie e, antes de interpela-la, entrega-se a uma previsão para si – prevê que, finalmente, poderá tocar alguém sem que o toque cause a posterior repulsa (não à toa, a câmera desce dos rostos para as mãos que se tocam). É um encontro único entre duas almas, algo que jamais ocorrerá no completo oposto que é o filme de Spielberg.

Pois a obsessão de AI: Inteligência Artificial (AI: Artificial Intelligence, EUA, 2001) é a mesma – a alma. Mas se no mundo atual de Eastwood ela é um elemento camuflado, latente, mas ainda vivo, no mundo futurista de Spielberg é artigo extinto, já que os afetos são supridos por simulacros. Mecas é como são chamados os robôs cujas imagens são perfeitamente humanas. Há de todos os tipos: o meca-amante (Gigolo Joe, vivido por Jude Law), a meca-babá. E há David (Haley Joel Osment), o meca-menino, programado para amar uma mãe cujo filho está num coma aparentemente irreversível. Mas quando, mesmo contrariando todas as expectativas, o filho verdadeiro acorda, David é rechaçado, não sem antes ouvir da mãe: “me desculpe por não ter te contado sobre o mundo”.

O mundo que Spielberg retrata é o pior desdobramento daquele que Eastwood crê ainda ter salvação – um mundo onde os afetos são comprados e descartados, e onde, ironicamente, a única alma remanescente é um simulacro, David. Pois mais do que a história de um Pinóquio moderno, esta é a história de um Pinóquio às avessas: se no original a curiosidade do boneco de madeira o afastou do amor de Gepeto, aqui o erro de David foi amar demais e verdadeiramente como nenhum outro ser ali fora capaz. Antes de abandoná-lo, a mãe o aconselha: “fique longe das pessoas”. E quando, mais tarde, David evoca a crença nesse amor materno, Joe o alerta: “Ela ama o que você faz por ela, assim como minhas clientes amam o que eu faço por elas”. De fato, as desgraças que se abatem sobre a jornada de David não são provenientes de seus atos ou escolhas, mas das ações de outrem, dos humanos, aqueles a quem ele ama incondicionalmente, ainda que sem reciprocidade.

A proteção que David encontra durante a jornada parte sempre de outros mecas, resquícios de uma humanidade agora extinta, e que agora são dizimados por seus criadores, que não toleram a ideia de que suas criaturas possam ser mais longevas do que eles próprios. Nesse sentido, a cena no parque é essencial: assustado ao ver a crueldade com que os mecas são abatidos diante de uma multidão delirante, David agarra a mão de Joe (e o encontro das mãos é tão forte quanto no filme de Eastwood). A multidão, no entanto, parece despertar de um transe ao ver o meca-garoto pronto para ser abatido: o prazer resultante da carnificina promovida até então é interrompido por aquele simulacro da infância, que, ao revelar um sentimento – o medo – gera a desconfiança de que talvez seja real. E é! David persegue o sonho de ser um menino de verdade à toa; seus sentimentos, embora programados, são mais reais do que os dos humanos que o cercam. Quando encontra a tão procurada Fada Azul, ora de forma sobre-humana para que ela atenda seu desejo, faz brotar um resquício de fé naquele mundo desacreditado. Quando acorda de sua hibernação, está transformado: o calor da pele humana faz com que a porcelana fria da Fada Azul se estilhace com o toque. Torna-se também a última memória do que sobrou da humanidade; justo ele, a imagem, o simulacro. Ironicamente, a benevolência não encontrada entre os humanos, ele acha nos seres especiais (seriam alienígenas ou mecas ultraevoluídos? A primeira aparição de David, em desfoque, sugere a segunda hipótese) que atendem seu pedido: um último dia com o ser que David mais amou – a mãe.

Enquanto Eastwood traz certo otimismo num filme em que ligações humanas extraordinárias contrariam um mundo de conexões supérfluas e rasteiras, Spielberg vê no meio de um apocalipse inevitável uma única alma entre tantos e tantos Pinóquios. Uma alma não genuína, um registro, mas que dadas as circunstâncias e cenário, adquire um valor único e inestimável. Eastwood faz um filme sobre almas em extinção; Spielberg, um filme sobre a última alma.

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