O leite da amargura
Por Marcella Grecco
(contém spoilers)
Não é somente o nome do filme que desperta curiosidade. Alguém que, porventura, nunca escutara falar de A Teta Assustada (La Teta Asustada, Peru/Espanha, 2009), pode também se surpreender ao ler a sinopse. Fausta (Magaly Solier), jovem moradora de uma vila no subúrbio de Lima, Peru, sofre de uma doença rara chamada teta assustada. Esta é transmitida de mães que foram estupradas ou que sofreram abusos durante a gestação para as filhas através do leite materno. A doença é sintomática e deixa as pessoas com um enorme medo de viver. No caso de Fausta, esse medo é por vezes exteriorizado através de sangramentos pelo nariz.
Além do medo de viver e do medo de pessoas, principalmente de homens, afinal são eles os culpados pela doença, Fausta tem medo de ser estuprada e de sofrer como sua mãe sofrera. Para proteger-se desta ameaça – mais comum durante os anos de 1960 e 1980, quando guerrilheiros do Sendero Luminoso espalharam o terror e fizeram muitas mulheres peruanas de vítimas -, Fausta decide algo inusitado: colocar uma batata dentro de sua vagina.
A batata na vagina atua como uma barreira e a protege do medo. Medo este que a impede de sair, de andar sozinha pela rua, de olhar nos olhos de outras pessoas e de confiar em alguém. Fausta pouco fala; entretanto, canta. Como se a palavra cantada pertencesse a outra realidade, desprovida de tanta crueldade e diferente do mundo dos homens. A batata na vagina é o medo literalmente enraizado em Fausta, o qual a jovem terá de enfrentar após a morte de sua mãe, já nos primeiros segundos do filme.
Para levar o corpo de sua mãe a Lima e para enterrá-lo dignamente, Fausta precisa de dinheiro. O amor à mãe e a vontade de compensar o seu sofrimento ainda em vida, fazem com que a moça enfrente o pavor de tudo e de todos, e com que comece a trabalhar na casa de uma pianista muito rica chamada Aída (Susi Sánchez). Apesar do título estranho e do fato de a jovem ter uma batata na vagina, a qual necessita ser constantemente podada para que ninguém note as raízes, o filme toca em pontos muito comuns no universo das artes em geral, como o medo, a superação e até mesmo o perdão, quando já no final Fausta implora para que retirem o tubérculo de dentro dela.
Um dos fatores que tornam o longa interessante, no entanto, é a maneira como estas questões são trabalhadas através de simbolismos. Por exemplo, ao chegar à casa de Aída, Fausta está pela primeira vez sozinha entre estranhos, claramente assustada. A nova patroa pede a ela então que a ajude a pendurar um quadro na parede. Aída passa para Fausta a furadeira e, Fausta, ao olhar para o reflexo que formara no vidro a sua frente, posiciona a furadeira como se fosse uma metralhadora. Ela ergue o corpo olhando fixamente para sua imagem, deixando a entender que daquele momento em diante estava declarando guerra ao seu medo.
Durante a narrativa objetos em cena ganham outras proporções ao assumirem sempre mais do que a simples funcionalidade. Como no caso da furadeira que não é mera furadeira ou ainda no caso de um guardanapo dobrado por Fausta que se assemelha a uma vagina – e inclusive, a faz lembrar disto, pois em seguida ela vai ao médico. Já no final do filme, Fausta corre até posicionar-se de frente para a gravura de um militar enquadrada em vidro na casa de Aída, a mesma da ocasião da furadeira. Ela acabara de passar por uma tentativa de estupro e, ao olhar para a imagem do militar a sua frente, a perna deste se sobrepõe ao reflexo de seu rosto compondo algo com clara referência a um pênis. A dicotomia masculino/feminino é bastante trabalhada ao longo da narrativa, seja através deste jogo com objetos ou através das cores azul e rosa, muito recorrentes na fotografia e na arte. Apesar de representarem universos distintos, pois o azul é comumente associado ao masculino e o rosa ao feminino, as cores convivem no mesmo quadro, sem, no entanto, deixar de prevalecer uma sobre a outra.
Outro fator que torna o filme interessante é a forma como a diretora (Claudia Llosa) apresenta-nos o seu país, especialmente através das cerimônias de casamento organizadas pela família de Fausta. As cores das roupas e as texturas variadas, assim como a música alta e as danças, contrastam e ao mesmo tempo se fundem à paisagem árida, uniforme e aparentemente sem vida daquele lugar. São poucos os filmes peruanos aos quais temos acesso, sendo que este país ainda se constitui como algo um tanto quanto exótico para nós e, provavelmente, em maior medida para outros locais, como alguns lugares da Europa.
A Teta Assustada foi o primeiro filme em toda a história do Peru a conseguir uma indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, no ano de 2010. O longa também fez muito sucesso na Europa, tendo ganhado um dos mais importantes prêmios do continente, o Urso de Ouro do Festival de Berlim, em 2009. Sem contar as muitas outras indicações e premiações como no Festival de Havana e no Festival de Gramado. Não que os festivais necessariamente premiem aqueles que realmente merecem, mas eles podem dar mais visibilidade a certas cinematografias e, geralmente, acabam indicando novos horizontes para o cinema.