Zoom-flecha na imagem-dilaceramento

por Álvaro André Zeini Cruz

[O zoom] é o inimigo número um do cinema e a prova disso é que a televisão o usa constantemente. […] Primeira lição: não se aproxime ou se afaste; saiba a distância certa desde o começo”. — Jean-Luc Godard [livre tradução]

Apesar da veemência desse típico aforisma godardiano, o zoom, claro, pode ser cinematográfico, e Hong Sang-soo está aqui para nos provar isso. Godard, no entanto, tem razão em alguns pontos; para além do uso televisivo — sobretudo no jornalismo, na estilística do ao vivo —, trata-se de um artifício afetado, mais inorgânico do que de costume, que supre mecanicamente, em pleno plano, a falha óptica do quadro mal fechado, da composição que, na duração, revela-se insuficiente.

Isso posto, a cena em questão — a coletiva dos médicos do hospital bombardeado em Gaza — tem natureza já inicialmente ambígua, já que o grafismo do GC televisivo contrasta com a qualidade limitada da imagem. Nela, seis médicos palestinos, vestindo jalecos ou roupas cirúrgicas, cercam um púlpito; um deles, mais alto, está centralizado atrás dos microfones. O quadro vertical, sintomático dos aparelhos que mais nos estendem na contemporaneidade, os aperta e confina, revelando pouco além dessa junta e de um emaranhado de lona ao fundo. Então, o zoom acontece.

Acontece com a habitual falta de tato (ou seria excesso?). Um zoom out que revela o espaço ao redor, preenchido pelo “véu” das tendas (no background) e dos lençóis, que se “estendem” pelo chão, do midground ao primeiro plano. São lençóis em diferentes cores e texturas, mas semelhantes no fato de serem volumosos, de guardarem algo abaixo dos tecidos. Mas o zoom não se contenta com o mistério dos lençóis e continua. Revela-se, então, o pé do púlpito e diante dele, dois homens sentados; os bonés num processo paradoxal de velar e sublinhar os rostos, e neles, a dor. Ambos olham para o que levam nos braços: os corpos de uma criança e de um bebê.

O zoom termina, reestabelecendo o quadro nessa verticalidade que se estende do médico que fala à abominável mancha de sangue no abdômen do neném morto, punctum da imagem. Fica a pergunta inevitável: era um zoom necessário? Era. Pois o zoom recua para que a cena não se restrinja à língua (essa codificação fascista, como diz Barthes), mas para que ela se consolide na linguagem e no sensível. O zoom se manifesta em sua forma opaca, maquínica, para que o olho da câmera recue até encontrar alguma cavidade orbitária, posta num crânio, num cérebro, capaz de ver e exclamar ­— Que horror! Que horror!

O zoom ocorre para que esse olho desprovido de corporeidade se instale nos nossos corpos e almas. É inevitável relembrar Didi-Huberman; diante dessa imagem, a única emoção possível é o horror multiplicado, potencializado. A interrogação (qualquer interrogação) é esmagada pelas exclamações estupefatas frente ao plano, que recua para abrir-se em crise e sintoma, para constituir-se como imagem-fato e, por fim, imagem-dilaceramento, aquela que, segundo Huberman, nos permite “entrever um fragmento do real” horror.

Esse zoom-olho descobre o punctum, o ventre do bebê, mas, ainda assim, continua, até sublinhar o braço caído, sem vida. Esse zoom sai de uma entranha para atravessar, rasgar, dilacerar simbolicamente todas as outras entranhas que o vêem, que, no entanto, permanecem materialmente intactas, porque a imagem é sempre insuficiente, porque não somos nós que estamos na guerra. Um zoom-flecha que nos lembra que, diante da insuficiência da imagem, é preciso que, pelo menos, ela não seja um logro. Um zoom que reenquadra porque não sabia a distância certa desde o começo, mas sabe que tem que tornar a imagem justa.