por Álvaro André Zeini Cruz
Em recente entrevista ao À Pala de Walsh, Christian Petzold defendeu a necessidade de um retorno à fotografia para se pensar o cinema, e, partindo dessa colocação, os walshianos organizaram a conversa em torno de uma imagem muito específica de Nina Ross em Yella. Como se não bastasse, entrecortaram o texto com a repetição desse fotograma, instante em que Yella, encharcada e deitada na encosta de um rio, olha para a câmera. São os olhos de Ross que estão em destaque, muito embora a mão apareça como único obstáculo entre esses olhares. Cúmplices, já que câmera retribui Yella com a visão de uma outra possibilidade para além daquela. Um novo mundo, asséptico e vazio, no qual a existência passa a ser questão de trânsito e negociação.
É basicamente isso que Yella faz ao longo do filme: fugindo do ex-marido abusivo, ela deixa a Alemanha Oriental para tentar a sorte no lado ocidental. Mas o passado é uma assombração que, além de persegui-la, a torna uma espécie de fantasma soviético, uma aparição cromática que vaga pela impessoalidade dos espaços pasteis, olhando o pouco que há para a ser visto nesse novo mundo. É para o olhar de Yella que esse contracampo ilusório e pouco atraente se organiza; uma vez que não há nada de real a ser contemplado (e muito menos tocado), resta como verdade os olhos de Nina Ross, que sustentam o paradoxo de serem o que há de mais concreto e de mais abismal nessa articulação imagética. Inclusive, protagonizam aquele que provavelmente é o único toque real nesse mundo farsesco: o momento em que Yella recosta o rosto no ombro supostamente protetor de Phillip. A ombreira do terno sublinha o olhar dessa Medusa que quer congelar instantes como este, interpessoais, de pele. Mas só há a pele dela; ele entra no máximo com o terno executivo, bem ajambrado. Consequentemente, não há toque ou troca a serem congelados; os corpos só serão petrificados individualmente, e como imagens.
Quando Yella deixa que Phillip cochile num momento inoportuno, ela quer desvirtuar o caminho combinado para levá-lo às relações familiares. Contudo, Phillip desperta para revelar-se um duplo do ex-marido, uma versão maquiada pela ilusão de civilidade do capitalismo. A violência interliga o fantasma do passado colapsado e a volatilidade desse presente que sobrevive das crises e solavancos. Essa dupla influência faz com que Yella ponha em prática o que aprendeu pelo olhar, negociação que resulta noutro corpo afogado. Nessa trama de corpos enrijecidos debaixo d’água, o de Yella volta desta forma ao plano final. É um plano semelhante ao do começo – replicado e esmiuçado na entrevista dos walshianos –, mas o olhar deixa de ser uma questão (porque os olhos estão fechados). Então, uma manta térmica é puxada sobre o corpo, deixando exposta apenas parte da mão, outrora obstáculo, agora superfície sensível à espera de um contato que lhe é reiteradamente negado. As pontas dos dedos, intocadas, inscritas e sublinhadas (como os olhos) sob a borda da manta térmica, estabelece uma correlação entre olhar e tato; e só o primeiro se concretiza no caso de Yella.
Essa imagem derradeira é a chave para que se compreenda o que separa Yella de seu filme-irmão, Undine (e o próprio Petzold fala sobre esse parentesco na entrevista). Neste último, a água é um meio de vida e de morte (como também apontam os walshianos). É ela que causará o desencontro fatídico entre Undine (Paula Beer) e Christoph (Franz Rogowski). Antes, Undine também tem o olhar sublinhado pelo ombro masculino (justamente quando escolhe a vítima que petrificará, também pelo afogamento). Novamente são olhos-redemoinhos – concretos e movediços –, mas, desta vez, vai-se além do olhar: quando Christoph mergulha para procurar o corpo de Undine, ele a vê como um fantasma submarino, que aparece para concretizar o toque negado a Yella.
As mãos se afagam numa despedida que, apesar de filmada, Christoph descobrirá irregistrável: assim que sai do lago, ele busca essa imagem digital, ao mesmo tempo que esconde o próprio olhar (e a procura desse olhar) da atual esposa, que o aguarda aflita. Na tela do notebook, nada além da mão desse homem, que viu, sabe que viu, mas que, nesse instante, tem que dissimular as imagens impregnadas na retina, no cérebro e na alma para encarar a companheira grávida. Então, Rogowski se torna o maior ator do mundo ao sustentar o olhar tranquilo sobre um meio sorriso; feição que, a um só tempo, esconde o homem que guarda dentro de si a imagem da amada morta e expõe o homem que vê uma vida se abrindo à frente. Morte e vida: questões fotográficas.
No último encontro com Undine, agora sem a luva do equipamento de mergulho, as mãos se entrelaçam; desta vez, pele sobre pele. Undine entrega a Christoph o bonequinho-mergulhador, esculpido em pedra, que ela apanhara quando se conheceram. Essa Medusa, verdadeiramente tocada e amada em vida, devolve ao homem o poder sobre seu destino, uma vez que entende o toque, o tato, como disparador para que sua imagem permaneça dentro de Christoph, tornando o corpo dele suporte sensível. Yella não tem a mesma sorte: as imagens que ela vê não só não se sustentam como retornam ao final inescapável, uma vez que as relações com os outros corpos se dão em negociatas de poder que a desumanizam. Não há toque, pele, célula, portanto, não há celuloide capaz de estabelecer um novo final. Yella olha para a câmera na esperança de que a instância narrativa seja mais empática do que as criaturas da narrativa, do que ela própria. Acaba petrificada junto ao ex-marido, desamor desde a primeira cena. Se Undine é filme-tsunami (de aquário) que entende o toque como disparador fulgás para o registro eterno, Yella é o rio plácido e traiçoeiro pronto a receber os sufocados, os que vivem como pedra, com as mãos esticadas como se clamassem por um mínimo contato.
Em cartaz no MUBI. A entrevista com Christian Petzold feita pelo À Pala de Walsh está disponível no http://www.apaladewalsh.com/2021/04/christian-petzold-tens-de-regressar-a-fotografia-para-compreenderes-algo-sobre-o-cinema/