por Álvaro André Zeini Cruz

(com spoiler)
O que você faria se só te restasse esse dia?
Se o mundo fosse acabar, o que você faria?
A pergunta, na voz de Paulinho Moska, se repetia na abertura de O Fim do mundo, nossa novela apocalíptica, e derradeira de Dias Gomes. Fosse feita às personagens de O Mundo depois de nós, provavelmente apenas uma responderia; curiosamente, a mais jovem, regulada por um desejo “por outro mundo” (ou seria “de outro mundo”?).
Entre releituras hitchcockianas — a corrida de Intriga internacional ganha duas releituras e os pássaros invasores se tornam flamingos na piscina —, o Obey obsoleto na camiseta e Teslas suicidas, o filme de Sam Esmail imagina o fim do mundo, não pelo modelo Roland Emmerich, mas pela corrente shyamalanesca de Fim dos tempos. Na obra-prima, de 2008, as árvores, em conluio com o vento, se rebelavam em um sopro contra humanidade. Eram tempos em que M. Night Shyamalan filmava o furo na lona de um jipe, indicando que, por aquela abertura, passava o “imostrável”, o invisível que nem mesmo o cinema pode enxergar, mas que existe e carrega a morte. Quinze anos depois, Esmail não vê o buraco, porque esse tipo de imagem-antecedência não existe mais; ele desestabiliza o plano, reelaborando-o numa verticalidade incompleta (a imagem muda, mas o suporte não acompanha), que se repete ao longo do filme. A câmera continua; vê de cima as personagens de Julia Roberts e Myha’la para, então, encontrar o buraco no teto, passar por ele e só agora vê-lo, antes de reenquadrar, num movimento mirabolante, a cabana isolada. Ou seja, o buraco só existe como imagem depois que a câmera o experencia, pois este é um filme acerca de um paradoxo — o desaparecimento das imagens numa era em que elas são consumidas com voracidade. Nesse tensionamento, o travelling out restaura a simetria (o rigor), que, no entanto, será cortada pelo trote de um borrão — corpo cujos frames não consolidam contorno; imagem em movimento em que sobra movimento e falta imagem. Buraco.
Desde Mr. Robot, Esmail é um cineasta de rigorosas desestabilizações; suas câmeras se colocam diante de arquiteturas humanas desumanizadas, construídas entre a ordem e a assepsia para abrigar transações. A questão é que (ainda) existem humanos em quadro, e estes seres tendem a se movimentar de maneira orgânica, incongruente a essas organizações espaciais. Se na série estrelada por Raimi Malek isso costumava resultar em campos e contracampos inquietantes, “claustrofobicamente descompostos” — com as cabeças das personagens nas quinas de backgrounds esvaziados —, neste apocalipse em que não há ciência, em que tudo o que se têm é a dúvida e a paranoia (desde Shyamalan), a câmera age como pode para encontrar a ordem do mundo contemporâneo: gira como se nos provocasse a virar o suporte televisivo na verticalidade de um celular.
Das inúmeras tensões que se abrem — sociais, raciais, de gênero, etc. —, o que norteia o filme de Esmail é o colapso das decodificações e a incomunicabilidade que se abre disso. Entre o descontrole dos meios de transporte e a falha dos meios de comunicação (entendendo essas duas coisas como uma continuidade), fica a pergunta: qual é, de fato, a falência primordial, a do meio ou a da mensagem? Em língua árabe, os dizeres nos panfletos instalam preconceitos e temores que são um fim, ou seja, não apontam sentidos nem à resolução, nem à sobrevivência. Além da natureza do emissor ser oculta, línguas e mensagens são constantemente raptadas e corrompidas para embaralhar contextos, potencializar possibilidades e paranoias. Enquanto as mensagens externas parecem teorias da conspiração, na comunicação dentro deste microcosmo, a superficialidade dos discursos soa menos como uma exposição temática do que como uma restrição de linguagem dessas personagens, cujas nuances variam a depender das interações, mas com os limites que cabem a cada um. Nesse atravancamento relacional, há reconhecimentos ambíguos (o que há no encontro entre LPs: admiração? Carência? Desejo? Poder?) — e identificações que perduram mesmo no fim do mundo (o pacto de branquitude entre Clay e Danny; grande sacada de casting, já que Hawke e Bacon estão cara de um, focinho do outro).
Num apocalipse onde quase nada se explica, não há liderança ou comando; mesmo o senso de sobrevivência aparece em espasmos desorientados, com algum delay. No mais, há, no máximo, uma consciência sólida (Scott, personagem de Mahershala Ali) e empatias circunstanciais. Atarantados nessa casa de revista de arquitetura (que pouco os protegerá), os adultos ocupam-se de si e abrem brecha para que Rose (Farrah Mackenzie) encontre outro norte. Negligenciada e amedrontada diante do desconhecido, ela se apega a querer saber o final da série que assistia quando as tecnologias colapsaram e a internet parou de funcionar. Não se trata de uma série qualquer, mas de um sucesso da década de 1990, esses anos espremidos entre o fim da Guerra Fria e o 11 de setembro 2001.
Se a descompensação vertical remonta às telas e imagens dos celulares (também à disposição das câmeras nos aparelhos mais recentes), uma nova verticalidade se instala como organização redentora nos planos finais do filme. Na cena, Rose encontra um bunker e, nele, uma TV, cuja tela emoldura o rosto quando este aponta para o extracampo. Esse olhar para além do quadro é retribuído por uma revelação em travelling out, e é nesse recuo que uma estante de DVDs enfileirados se abre como um mundo luminoso. As lombadas coloridas reluzem títulos e rostos de personagens. Dentro, supõem-se que estão as mídias circulares resplandecentes, objetos guardados que guardam outra coisa — registros cujas reproduções estão vinculadas ao alcance de quem ali habita, às rotinas, vivências e cuidados para a manutenção dessas “lâmpadas mágicas”. Entre os títulos, Rose encontra sua série. Friends desponta em O Mundo depois de nós, não como uma representação ficcional produzida num determinado contexto, mas como uma espécie de retrotopia.
Paira sobre Friends certo imaginário (nostálgico) sobre essa década que talvez seja o último lampejo de uma real hegemonia estadunidense (e os historiadores que me corrijam se falo besteira). No menu do DVD, o Empire State se ergue como símbolo desse outro mundo da sitcom, que não é o mesmo da Nova York bombardeada na cena que antecede esta, sob os olhos impotentes de Amanda (Roberts) e Ruth (Myha’la). Mas Rose não assiste o bombardeio; para contornar o que lhe resta de estável — a desproteção e o medo diante desse apocalipse enigmático —, ela retorna a um mundo que imagina (porque nostalgias são imaginadas) ser mais concreto, mais plausível, seguro na simplicidade da comédia de situação. A letra da música promete sanar uma incompetência que atravessa várias instâncias da trama. I’ll be there for you. Em O Mundo depois de nós, não há laço estrutural, social ou familiar que possa garantir isso. A promessa vem desse produto cultural (devidamente problematizado noutra cena) do qual a permanência depende da materialidade, que está guardado num artefato e não em catálogos (incipientes) cujas existências dependem do balanço dos streamings.
What we lose when streaming companies choose what we watch. A pergunta retórica intitulou um artigo recente de Richard Brody para o The New Yorker, para, então, defender:
[…] assim como as artes são mais do que meros nutrientes, o meio é mais do que um sistema de entrega: tem uma estética e uma psicologia próprias. O principal fator do vídeo doméstico é o controle, e é a luta pelo controle, entre entidades corporativas e espectadores individuais, que está em jogo na mudança da mídia física para o streaming (tradução deste crítico).
Produzido pela Netflix, O Mundo depois de nós chega a essa conclusão controlada (parcialmente). Isso porque os Estudos Culturais nos ensinam que esse tipo de discurso autocrítico costuma ser calculado; aqui, parte de uma negociação em que, o poder hegemônico — a Netflix — faz seu mea-culpa, como se o streaming, que começou entregando mídias, também vivesse o saudosismo das mídias físicas. Essa construção deliberada visa dissipar a Netflix das culpas, como se a empresa não desenvolvesse um modelo predatório, como se existisse uma disposição de preservar e conviver com o passado, mesmo que ele não seja lucrativo.
Mas o cálculo desse discurso de superfície (“não deixem de comprar as mídias”) escapa das mãos do streaming hegemônico em um plano-de-Tróia feito por Sam Esmail: o detalhe do dedo que percorre o controle remoto, passa pelo botão (ou seria buraco?) da Netflix e toca noutra tecla, anterior. Play. Esfrega-se a lâmpada mágica e o gênio resplandece da imagem — pobre, mas persistente — do DVD. Irônica, a música-tema teima sobre os créditos finais, cantando essa utopia construída em retrospecto, nostálgica numa era das redes sociais e dos streamings, aparentemente inalcançável num mundo onde as comunicações imediatas e a cultura (registro dessas comunicações) estão sob regimento de mãos invisíveis, que prometem fugir ao primeiro toque das trombetas do apocalipse.
Se a música de Paulinho Moska perguntasse o que você faria se só te restasse esse dia?, a Netflix, provavelmente, responderia I won’t be there for you (like I haven’t been there before). Left the world behind.