por Álvaro André Zeini Cruz

As primeiras notas soam e a câmera sobe pelo beco de varais lotados que atravessam de um prédio a outro. Ao fundo, no vácuo das roupas penduradas, Anita (Ariana Debose) aparece para protagonizar a sequência de América, numa releitura que torce as ambiguidades do número interpretado por Rita Moreno há seis décadas. Anita recolhe as roupas, e a corrida das peças pela corda cria um efeito de cortina que vela e desvela o jogral dos primeiros versos. O espetáculo vai começar. Mas não será restrito à laje-palco, como no filme de Robert Wise e Jerome Robbins; Anita cruza a janela, encontra as vizinhas no corredor e, juntas, partem em direção às ruas nova-iorquinas para cantarem I like to be in America.
A dinâmica do número permanece como no original: para cada elogio delas ao modo de vida americano (everything is free in America), há uma réplica dos namorados (for a small fee in America). A ironia prevalece no contraponto entre o deslumbramento e um sarcasmo ressentido, mas o confronto da letra agora é mera superfície; a outra volta no parafuso vem da mise en scène: no West Side Story de Steven Spielberg, América é o mais solar dos números, com direito à paleta aquecida e os matizes saturados dos musicais da era de ouro hollywoodiana. Mas por trás da música e da dança vibrantes, há indícios de um terremoto que trinca paredes e espalha poeira. A América de Anita está prestes a desabar.
É por isso mesmo que o West Side Story de Spielberg começa não mais numa quadra de basquete, mas numa construção, com um sujeito surgindo do subterrâneo, de um alçapão entre escombros. Em Políticas da imagem, Giselle Beiguelman cita o pensador Andreas Huyssen ao dizer que “já não somos mais capazes de criar ruínas” – aquilo que rui pela ação do tempo –, “apenas escombros”, aquilo que cai pelas mãos (e interesses) dos homens. Aqui, vê-se a ação de homens invisíveis (há os intermediários, a polícia, a lei, mas não os donos do dinheiro), enquanto os que dançam e cantam – divididos entre Sharks e Jets – são admições provisórias, que circulam por esses escombros-promessas – não a imigrantes, sejam irlandeses ou porto-riquenhos (ainda que a polícia prefira os primeiros).
A câmera mostra: não há de sobrar pedra sobre pedra para que ali se erga o Lincoln Center, espaço das artes e do bom gosto institucionalizados, onde, obviamente, não caberá a disputa por território entre as gangues. A briga, portanto, é miragem, poeira praticamente assentada, pronta para ser varrida; nem como difusão aérea serve. Por isso mesmo, quando a luta mortal começa numa fábrica de sal, os corpos apenas orbitam a duna, que permanece intacta; os grãos não se dissipam porque estão em espaços de acúmulo em que tudo tende ao chão. Enquanto Tony (Ansel Egort, cuja escalação evoca os galãs altos e esguios da velha Hollywood) e os Jets se equilibram numa disputa em um píer esburacado, Maria (Rachel Zegler) desliza entre os manequins e as decorações da loja de departamento, capazes de oferecer todo o preenchimento aos apartamentos que se projetam na canção de Anita.
Em América, Anita canta os arranha-céus que florescem, mas seu próprio apartamento tem os tecidos de costura expostos como redes de proteção, dessas que cercam as construções para evitar que as ferramentas e os entulhos acertem alguém. Ela cruza um protesto contra os despejos provocados por essa gentrificação e posa diante do painel publicitário anunciando um novo empreendimento imobiliário. Trata-se de uma tapadeira propositalmente farsesca em meio às outras tantas que, assimiladas de maneira realista, evocam os escombros do próprio Cinema. Então, uma nuvem de poeira emerge por trás do anúncio, separando a tapadeira diegeticamente falsa das que estão atrás, pretensamente realistas (mas será que o são?). Desde o anúncio desta releitura, uma pergunta ecoou: por que raios Spielberg decidiu contar uma velha história velha, nascida (com atraso) numa Hollywood em declínio? A chave talvez esteja noutra questão: Spielberg demole ou espana o pó?
Se Brian De Palma usa a pintura de um deserto para enganar momentaneamente o olhar em Dublê de Corpo, Spielberg faz um filme em que a matéria, as tapadeiras pintadas, as ilusões ópticas vão desabando sucessivamente até o ato final, quando Anita encontra a escuridão e Tony duela num cenário pós-apocalíptico (e diante dessa transitoriedade da matéria, as cenas românticas – atrás da arquibancada, na igreja – prevalecem sob a atmosfera de luzes distorcidas, exageradas, sirkianas). Spielberg refez um clássico, mas não para emulá-lo, e sim para demoli-lo. Tal qual um maneirista, não refaz, mas desfaz. Morto-vivo, o West Side Story de Spielberg é filme de cinema – e sobre Cinema – lançado em meio a pandemia de streamings. Ironicamente, é uma pedra cinematográfica que encontrou sobrevida no caldo dos CGIs da Disney+.