por Álvaro André Zeini Cruz
Era 1988 e Vale Tudo levava ao ar um país disposto a se passar a limpo, depois de 21 anos de ditadura. Diariamente, a novela de Gilberto Braga, Leonor Bassères e Aguinaldo Silva apresentava os bastidores não de um poder institucional, mas da elite econômica hereditária, que, como observava Afonso (Cássio Gabus Mendes) — um desses herdeiros —, sugava o país sem oferecer nada em troca. Na outra ponta dessa colônia de exploração em plena república, Raquel, Poliana e cia lutavam para vencer na vida e para fomentar sonho a um país que se vislumbrava (ou desejava-se vislumbrar).
É 2025 e Vale Tudo, sob a batuta de Manuela Dias, não tem mais o ímpeto de pautar questões sociais e políticas; se antes o melodrama costurava vida privada e social, o que se assiste agora é a correlação entre um feudo doméstico (os Roitman) e a pequena comunidade da Vila Isabel. Não há contraste entre esses dois mundos e o vislumbre de Brasil não é mais uma construção utópica, mas uma impressão ligeira que, vez ou outra, encontra brecha entre a dramaturgia do bom-mocismo e a aceleração das redes sociais. Em comum às duas Vale Tudo, só mesmo o vizinho — o Jornal Nacional.
Se a grade de programação é uma estrutura comum à TV linear (embora o SBT, aparentemente, a desconheça), a grade-sanduíche, intercalando telenovelas e telejornais, é um artifício consolidado pela Globo em consonância aos interesses da ditadura militar: entre a notícia e a trama, ia-se construindo uma identidade nacional, mediada entre interesses hegemônicos e concessões às culturas subalternas. Refúgio dos comunistas de Roberto Marinho, as novelas sempre deram guarida (entre avanços e retrocessos) aos anseios populares, enquanto o empolado Jornal Nacional dava voz ao conservadorismo dos militares e seus patrocinadores (entre eles, a própria Globo).
Esse preâmbulo é uma síntese breve para chegarmos ao dia 3 de julho de 2025, data em que o vizinho de Vale Tudo causou comoção ao “mostrar sua cara”. Contrariando a própria propaganda, laudatória de um jornalismo “que vê todos os lados”, o Jornal Nacional exibiu uma matéria em que, supostamente, defendeu o Congresso brasileiro de ataques, como se, de novo, prédios tivessem sido invadidos e depredados, e pessoas atacadas por uma turba de radicalizados. Nada disso aconteceu; o suposto ataque antidemocrático veio de uma reação social, onde o descontentamento político mirou, de forma rara, deputados e senadores do Congresso Nacional. A hashtag “Congresso Inimigo do Povo” e um conjunto de vídeos satíricos, zombando os jantares entre políticos e lobistas, foram a gota d’água para que William Bonner e Renata Vasconcelos deixassem um calculado comedimento pós lava-jato para advogarem em prol do Legislativo com uma retórica tão duvidosa, que pôs o próprio jornalismo no meio do fogo cruzado.
Mas antes de pensar as estratégias do jornal de maior audiência do país, convém fazer um desvio e ir ao canal de notícias do grupo Globo, onde é recorrente que a notícia seja dada e debatida por uma pluralidade premeditada. Vejamos o exemplo do Estúdio I: no programa capitaneado pela jornalista Andréia Saddi, não é incomum que se aponte a desassociação entre Congresso e sociedade, e até que se ouça, dos mais ousados, que este Congresso é o pior desde a redemocratização. Claro, tais ponderações vêm, geralmente, acompanhadas por observações sobre a inabilidade do Executivo ao diálogo, e quase sempre recaem em alguma observação sobre responsabilidade fiscal — a responsabilização do Congresso costuma ser posicionada no meio dos discursos; a culpa de Executivo, no fim, como conclusão incontornável. Tão fiscalista quanto o Congresso — que detém uma boa fatia do erário com o orçamento secreto (reposicionado como emenda parlamentar) —, o programa toca relativamente pouco no tópico “subsídios e desonerações”, talvez porque a Globo seja uma das contempladas nessa rubrica orçamentária, assim como boa parte da imprensa.
De qualquer forma, há que se reconhecer que existe algum jornalismo na Globo News (dia desses, passei pela Jovem Pan e havia lá uma dissonância cognitiva televisionada, debatendo se o Brasil já era ou não uma nova Venezuela), mesmo que desponte nas brechas dos interesses do mercado (do qual a Globo faz parte), aproveitando-se do desejo em manter uma aparência de credibilidade. Nas lacunas entre Mervais, Joéis e Demétrios, e entre as entradas do Valor Econômico apontando as agruras do pleno emprego, figuras como Otávio Guedes, Daniela Lima, Natuza Nery, Júlia Duailibi e a própria Saddi conseguem (com mais ou menos empenho) exercer algum jornalismo como construção social do conhecimento atrelada a algum interesse público, mesmo que não se dirijam ao espectador, mas ao assinante (o que, por si só, atrela esse jornalismo a uma visão de mundo pautada por relações econômicas). Ainda assim, quando convocados por instâncias e demandas superiores, moderam rapidamente seus discursos, o que é muito óbvio para quem acompanha o canal com regularidade. Nesse cenário, Flávia Oliveira é a única voz dissonante, que busca ver os fatos por perspectivas mais complexas e não negociadas pela hegemonia. É uma mulher preta que, entendendo sua presença como uma infiltração nesse status quo, pratica o jornalismo como uma missão moral redobrada, comprometida a olhar a notícia pela complexidade, a elucubrar o mundo para além daqueles que agendam as pautas.
Essa volta toda é para dizer que os ataques “antidemocráticos” que tanto incomodaram o JN estão, vez ou outra, nas bocas dos próprios jornalistas do grupo; claro, num canal mais restrito, sob a condição de que a síntese do debate não contrarie a raiz dos interesses de quem noticia (nesse sentido, os debates da Globo News agem como uma espécie de gatekeeper, que mantém o discurso sob controle). O JN de Bonner não é bobo: sabe que os vídeos produzidos por IA são paródias críticas, mas não configuram deepfake, uma vez que não se pode tomá-los como verídicos (o rosto de “Hugo Não-se-importa” não é o de Hugo Motta). Sabe também que a hashtag “Congresso Inimigo do povo” não é um ataque institucional às casas, com a pretensão de interditá-las (como Bolsonaro fazia com o judiciário), mas uma hipérbole daquilo que alguns jornalistas da própria Globo conseguem expor entre brechas do cabo: trata-se de um Congresso dessintonizado das preocupações populares, que, majoritariamente, trabalha apenas por seus próprios interesses. O que o JN operou, dias atrás, foi uma consciente distorção do discurso, replicando um suposto novo risco — o da polarização social. Eis, aqui, a raiz do incômodo, o calcanhar de Aquiles do desmedido contra-ataque Global.
O temor que tomou a TV Globo e o Congresso é um só, porque, no fundo, esses grupos compõem uma elite com interesses próximos, mas que se viram ameaçados — como há muito tempo não eram — por uma realidade que tentam escamotear: a polarização social já existe; como disse Leonardo Sakamoto, ela não resiste a um farfalhar dos livros de História do Brasil. A polarização social não é um risco que se avizinha, é a boa e velha guerra de classes, exponencializada num país que é República de exploração, em que o Congresso está a serviço de Marcos Aurélios e Odetes Roitmans (quando não são os próprios que ocupam as cadeiras dos plenários). O que fez o discreto e “imparcial” Jornal Nacional passar tamanho recibo foi a mera possibilidade de que haja uma parcela da sociedade pronta a olhar, de novo, para a doença, quando interessa ao jornalismo distrair-nos com sintomas espetaculares (mas superficiais), como a lava-jato e os mensalões (agora institucionalizados como emendas parlamentares e chantagem política das elites; por isso, menos jornalisticamente escandalosos).
Ao tomar como ataque antidemocrático o pedido de justiça social e fiscal, o principal telejornal do país levou ao ar uma matéria ato-falho, que deixa entrever os limites do jornalismo desses grandes grupos de televisão privada, cujo modelo de negócio prevê, justamente, o patrocínio da vizinhança endinheirada. Ao defender a atual formação do Congresso diante de uma mínima intenção radical (no sentido de encontrar a raiz do problema), o mesmo Bonner que, há pouco mais de um ano, prestava solidariedade às vítimas das enchentes de Porto Alegre, ratifica, indiretamente, projetos como a desindexação e congelamento do salário-mínimo, os cortes em programas sociais e as ações anticlimáticas. Explícita como poucas vezes nos últimos anos, a intenção não passou desapercebida e chamou atenção nas redes sociais: mais ridículo do que o discurso da suposta polarização social encampado por Hugo Motta, só mesmo um jornalismo que, supostamente sintonizado com as questões nacionais, se deixa levar deliberadamente por esse tipo de delírio a la Jovem Pan, encapando o vídeo-meme do Presidente da Câmara sob o (novo) Padrão Globo de Qualidade (que não é mais tão qualificado assim).
Se a intenção era lançar o medo da polarização social como algo parecido ao temor que alguns brasileiros têm do fantasma do comunismo, o tiro saiu pela culatra, porque essa polarização não tem nada de espectral; pelo contrário, é bastante palpável num país conhecido e pesquisado pelos abismos sociais. A desfaçatez do episódio revela o atual estado do jornalismo da Globo, progressista nas pontas mais evidentes, conservador na raiz desde sempre; mas, aparentemente, com menos traquejo em moldar seus discursos. Novidade mesmo é que, se antes cabia à telenovela contrastar o jornalismo presente com a proposição de um país sonhado, resta agora essa Vale Tudo insípida e conformada, que abre mão de um Brasil passado a limpo pela imaginação supositiva e se contenta com o maniqueísmo negociado; a perversidade das elites devidamente humanizada pela confraternização cordial do “assim sempre foi, assim sempre será”. Na grade-sanduíche, fato e ficção poucas vezes se afinaram em tal conservadorismo. Tampouco foram tão indigestos.