por Álvaro André Zeini Cruz

Ano passado, a Semana ABC propôs uma discussão sobre Inteligência Artificial; nessa mesa, Glauco Arbix, sociólogo e professor da USP, alertou: A IA não suplantará as ocupações da elite, dos donos do capital, obviamente porque eles a detêm. Tampouco substituirá o trabalho operário, já que, falhas, as experiências nesse sentido comprovaram a indispensabilidade da mão de obra humana. Para ele, em um médio prazo, a Inteligência Artificial tomará, sim, as ocupações nesse intervalo, isto é, os empregos médios, aqueles que sempre figuraram no horizonte de nossa educação bancária; aqueles que as propagandas das instituições de ensino superior vendem como garantidos, atrelados a um futuro estável.
Ontem, depois de uma semana midiática em torno da “PL do estupro” — projeto de lei que visa escravizar corpos e destinos de pessoas estupradas —, um deputado (de um desses novos partidos jurássicos) resgatou uma PEC que quer legalizar o trabalho a partir dos 14 anos. Na defesa à emenda, o deputado acusa a ineficiência na educação como suporte à proposta. O trabalho seria, então, a solução pragmática/particular a uma questão social; “micro empreendedorismo” calculado para se fazer uma linha de produção de pontos finais às infâncias, ao lúdico, ao ócio criativo. Claro, nada disso chega à família do deputado, que pensa tudo isso aos filhos dos outros, sibilando no subtexto: “produza. E barato!”. Dia desses, o pastor Marco Feliciano era outro que bradava contra qualquer possibilidade de diminuição da jornada de trabalho — “o país tem que crescer!”. Anteontem, entre a PL dos “nasçam, custe o que custar” e a PEC do “trabalhem, custe o que custar”, o Brasil amargou um 44º lugar (entre 56 países) num ranking internacional que avalia a criatividade; alunos economicamente mais favorecidos ficaram 11 pontos acima dos mais pobres.
Entre os mistérios desses agendamentos das pautas, viralizou, nas últimas horas, o vídeo de um pastor-celebridade que, naquela retórica do espetáculo, aconselha os pais-fiéis a não mandarem seus filhos à faculdade. Eis as palavras do sujeito:
“Se a faculdade vai acabar com a vida do teu filho, não manda ele para a faculdade. Não manda! Vai vender picolé na garagem. Você criou para quê? Para ele ir para o inferno, pô? “Criou a sua filha para quê? Para virar uma vagabunda? Ou você a criou para virar uma mulher santa, uma mulher digna de família? Aí ela tem um diploma, é rodada, é doida”.
“Palavras da fé”, estilisticamente bem captadas, sem qualquer traço daquelas pregações que, em imagens quase caseiras, custeiam as lacunas televisivas. Pelo contrário, está no aspect ratio da moda, na vertical, justo no recorte para destacar o rock star ungido, mas com vislumbres da construção midiática ao redor — o cenário a la Ted Talks, por onde o pastor transita entre coach e stand-up comedy. Composto pelo figurino minimalista, cabelo engomadamente descolado e bronzeado tardio entre Colírio Capricho e galã da Malhação Múltipla Escolha, Valadão afina a voz para fazer humor datado: “ah, mas ela tem um sonho”, ele fala, imitando não o pai, mas a mãe, debochando desta que costuma ser o centro dos planos e perspectivas familiares, desta que lidera a maioria dos lares brasileiros. O ataque parte contra uma educação libertadora no sentido mais amplo, mas logo cerca um gênero, atacando, principalmente, uma educação emancipadora às mulheres. Voltamos, de certa forma, à discussão da semana passada, agora enunciada não por um engravatado fundamentalista que busca os holofotes, e, sim, pelo pastor-pretenso-galã, cuja imagem é calculada para acionar toda uma psicanálise — desejo, projeção, recalque e castração na órbita de um sobrenome no aumentativo.
Esse conluio de agendas (“coincidência” de eventos num mês junino apertado) me fez voltar a essa palestra passada para que eu, enfim, compreendesse que, tanto o deputado quanto o pastor, anseiam um horizonte próspero, mesmo que não a todos. Esse futuro brilhante de uma elite e de uma IA que, no fundo, são a mesma coisa: branca, masculina, hegemônica. E, claro, o amanhã de uma maioria “abençoada” por poder refrescar-se, num país cada vez mais tropical (mesmo não havendo mudança climática, como defendem), vendendo picolés na garagem, como orientou o pastor. A garagem, aliás, também deverá ser grata, dando-se por satisfeita em abrigar o carrinho térmico “empreendedor” (pelo menos, com custo inferior a R$70.000,00).
Da emenda que piora o soneto ao monólogo-coach de Valadão, o que se sustenta é a existência de subsistência, longe dos perigos (da autonomia) da educação — autonomia cujo sentido vai do intelecto aos corpos, num país em que há muitos que acham que eles devem estar à disposição. Valadão, esse corpo dado à câmera, ao viral, ali se coloca para operar o que, na publicidade, é chamado de reposicionamento: reposicionamento de um sonho, em que se elimina a classe média — boa parte dela alavancada pelo consumo na social-democracia — para fortalecerem-se os polos, para que os mais pobres sonhem em ser catapultados milagrosamente a um céu branco, automatizado, acessível por essa conjunção entre esforço no inferno e fé (ironicamente, o sonho de uma parte da classe-média se realizaria, mas não da forma esperada).
Ah, também foi tópico da semana o caso da atriz que muda o texto para não pronunciar a palavra “desgraça”, segundo ela, carregada de energias negativas. Peço desculpas por ir contra a vibe, mas a palavra “inferno” é um tanto quanto inevitável, já que, nesse reposicionamento da teologia da prosperidade aos extremos (ao lugar onde as calotas derretem), uma negociação típica do melodrama é radicalizada: o céu pode, sim, ser material, mas para estar entre nós, é preciso que se viva um inferno na Terra, que se empreenda uma penitência individualista, sem o auxílio dessas coisas públicas, sociais, como a educação. Forrest Gump já não cabe como parábola Cristã neste segundo século da imagem — como defendia Ismail Xavier no centenário do primeiro —, porque lá havia o esforço em troca de uma gradual ascensão aos céus terrenos, ao passo que as práticas e discursos desses últimos dias eliminam nuances, classes médias, assentando apenas promessas e maniqueísmo.
Valadão é o apito para que outros, menos midiatizáveis do que ele, ecoem a palavra no boca a boca. Há uma ironia: ele discursa diante de um telão de LED, que ilumina um enorme cérebro, órgão das sinapses, dessas iluminações humanas, não-artificiais, que percebem, decifram e reinternalizam o mundo. Justamente o órgão que o pastor discursa para docilizar. Dessa conjunção entre forma e fundo, pode-se fazer uma série de leituras: talvez o cérebro gigante — que carrega um imaginário científico — queira apenas trazer alguma legitimidade ao show de absurdos, referendar o pacto com quem talvez ouça tudo aquilo sem muita certeza. Por outro lado, pode ser que se pregue o oposto; que a ciência está atrás da fé, como se a palavra fizesse o cérebro e não o contrário (nesse sentido, talvez a arte não seja tão bem-sucedida). Cabe ainda outra leitura: com o figurino ornando com a paleta do background, Valadão é cordeiro que estende cérebros maiores, não necessariamente no tamanho, mas na altura que ocupam na pirâmide.
Um detalhe: um breve plano aberto revela que esse cérebro, com entranhas evidentes, escorre, formando uma poça gosmenta na base do telão. Fica a dúvida: essa liquefação é projeto ou o ato-falho? A fé não explica, mas a ciência pode elaborar hipóteses. De qualquer forma, nessa campanha de reposicionamento, a arte pecou. Que o pobre responsável escape do abismo urdido, entre imagens, por varões e Valadões, cujo último álbum, aliás, tem o título de FlashbackFé. Nota-se bem o tipo de passado que esses senhores “do futuro” projetam.