Uma Separação, de Katie Kitamura

por Álvaro André Zeini Cruz

Uma mulher narra sua inesperada ida à Grécia. Ela parte à procura do ex-marido depois de um telefonema da sogra, Isabella, que não sabe da separação dos dois. Havia sido um pedido de Christopher que o fim do casamento fosse mantido em segredo; agora, ele estava desaparecido no destino paradisíaco onde, ao menos aparentemente, pesquisava seu próximo livro. Pressionada por um status matrimonial que só persiste socialmente, esta narradora sem nome deixa o novo companheiro e os novos rumos de sua vida e parte para buscar esse passado ainda próximo num luxuoso e esvaziado hotel em meio a uma ilha que acabara de ser incendiada.

Christopher é autor de um livro só, mas, ainda assim, de relativo sucesso; a protagonista é tradutora, profissão que, segundo ela, é marcada pela passividade e pela invisibilidade – “[…] tradutora ou médium, tanto uma como outra teriam sido profissões perfeitas para mim”, diz a certa altura. Nesse sentido, a invisibilidade dessa mulher é uma questão contraditória, já que, além de narradora autodiegética (que narra e protagoniza a narração), ela baliza um discurso indireto livre que, não contente em se apropriar das falas alheias, parte delas para fazer as imensas digressões que expõem a subjetividade dessa personagem e dão corpo à dilatação desconfortável do romance. É nesse embaralhamento de ações (pequenas), acontecimentos e pensamentos que a trama se dilata num suspense atmosférico, em que o espaço – ironicamente quase todo transformado em fumaça e pó – abriga o conflito que orbita a invisibilidade oposta à protagonista: Christopher, figura imaterial, mas paradoxalmente assentada pelas palavras da narração e concretizada no resort, espaço que serve de extensão, especulação e memória.

Uma ambiguidade emerge dessa trama de casamento que se dá a partir de um ponto de vista só: embora a narração seja evidentemente parcial, a narradora vai passando por uma epifania processual, uma gradual tomada de consciência de que pouco, quase nada, sabia sobre o antigo companheiro. Essa consciência perturbadora desponta indiretamente quando, por exemplo, ela fala da escolha dele pelo resort: “Christopher gostava de acomodações luxuosas, e luxo e romance são praticamente sinônimos para certos tipos de pessoa – e isso me deixava inquieta”. Ainda mais contundentes são duas passagens, distantes no texto, que se contrapõem: se num primeiro momento ela conta que Christopher “distribuía seu charme tão generosamente que corria o risco de esgarçá-lo”, mais adiante, diz que o ex “era um homem charmoso, e o charme é feito de superfícies – todo homem charmoso é um impostor”. Se o esgarçamento é a dilatação de uma determinada matéria até que ela perca sua malha e se rompa, revelando assim as camadas mais profundas, por outro lado, a manutenção da ideia da superfície como uma camada impostora revela que, embora os poros estivessem evidentes e constatados, a relação entre ela o marido permanecera no raso, no nível da farsa. A culpa? Dos dois, de algum, de nenhum? Pouco importa, uma vez que, embora a ruptura primordial aqui envolva um casamento, esta não é a separação que sustenta, atravessa e rasga o romance de Katie Kitamura.

Pois se num primeiro momento a personagem não tem pressa de encontrar o ex-marido – aproveitando o tempo para conviver com os locais, colhendo pequenos relatos e, a partir disso, alimentando hipóteses acerca do homem que nunca apareceu a ela –, a chegada de dois personagens faz com que sinta a necessidade de deixar o terreno da imaginação supositiva. É chegado o momento em que a narradora precisa de fatos. Mas os fatos pragmáticos, aqueles que se revelam como verdades propulsoras das decisões, das superações, não vem; só o que se apresenta à protagonista é a vida como espaço-tempo da ignorância e dos enigmas, da vista esfumaçada que turva as aparições e desaparecimentos, dos solavancos que fazem com que as viagens sejam movimentos disformes, com tangenciamentos, sincronicidades breves, mas marcados principalmente pelas separações, essas sim, fatídicas. A tradutora, que não mais consegue decifrar seus próprios sentimentos, é alçada ao entendimento de que a autoria é inescapável, uma vez que só o que resta é elucubrar sobre a própria passividade, conjecturar sobre a inevitável submissão aos mistérios.