Uma análise formalista da politização do pastel

por Álvaro André Zeini Cruz

A teoria da Gestalt nos ensina que a compreensão da forma depende do fundo que a contrasta. Num exemplar recente do gênero audiovisual mais tradicional das campanhas políticas brasileiras – a lambiscada no pastel –, Rosangela Moro é a protagonista, devidamente centralizada na imagem gravada com celular. É possível que a verticalidade do vídeo tenha produzido uma negligência com o background, já que é justamente o aperto deste aspect ratio que acentua o contraste imagético e social que viralizou nas redes sociais. 

Comecemos pelo centro da imagem: figura replicada no figurino, Rosângela veste uma camiseta em que ela é a própria estampa; no caso, foto-forma contrastada pelo branco digno das melhores publicidades de sabão em pó (como se não bastasse, há ainda o boné, posto como um acessório de popularidade desajeitado, como se a aba tivesse consciência do début mútuo entre candidata e chapéu). Mas, ao contrário da “Rô” da camiseta, cuja foto é impressa nesse fundo infinito de algodão e Omo, Rosângela Moro tem como fundo o mundo real; mais especificamente, uma das feiras de rua de um país em que 33 milhões de pessoas passam fome diariamente, onde pessoas reviram lixo em busca de alimentos. É justamente o que está à margem, de inúmeras maneiras possíveis, inclusive do quadro.

Sob a lona laranja, além de Rosângela, está uma senhora que, com as mangas do blusão puído dobradas, revira o saco de lixo preso à barraca de pastel. O rosto permanece incógnito, seja pela posição em ¾ de costas, seja pelo gorro enfiado, que contrasta ao boné encabuladamente imaculado. A inconsistência do quadro – cuja margem não só interrompe, mas, sem querer, brinca de velar e desvelar – acaba corroborando para que nosso olhar encontre esse “fundo” e o transforme em figura. Essa coadjuvante intrometida pelo acaso executa a ação pragmática de uma mise en scène denotativa; tenta matar a fome, enquanto a outra, no centro do quadro, trabalha a dimensão simbólica a partir de um clichê. 

Nessa midiatização pasteleira, Rosângela morde e, apertando os olhos em direção ao extracampo, evoca uma figura midiática mais consolidada: tal qual Ana Maria Braga, ela suspende à reação ao pastel, fazendo com que a câmera corrija o quadro. É a vez de Rosângela velar e desvelar a senhora ao fundo, jogo que, como lembra Bordwell, conduz o olhar de uma à outra. É, então, que forma e fundo se chocam definitivamente e não se sabe mais quem é o que.

Passado o suspense – e na impossibilidade de, como Ana Maria, passar por debaixo da mesa ou acionar os cachorros-imãs de geladeira –, Rosângela gesticula com a mão e rodopia, sinalizando sua aprovação a essa iguaria popular a qual a política se submete. A senhora, por sua vez, continua em sua empreitada lixo adentro, mantendo também a atenção de quem olha a cena, uma vez que não é mais um contraste restrito à função de fundo da forma; contrasta agora como completa antítese, contraponto que sequestra o olhar graças à discrepância interna do plano. À margem da imagem, a intrusa acidental se torna forma notável, que desvenda a farsa fílmica do pastel e lembra a tragédia do real. Pode-se concluir que a forma não contava com o fundo; talvez porque tenha se esquecido de que o fundo, por aqui, é um abismo.

ps.: o vídeo em questão pode ser facilmente encontrado no Youtube ou em redes sociais.