Um Homem Diferente

por Liciane Mamede

Numa das cenas de Um Homem Diferente (A Different Man, Aaron Schimberg, 2024), terceiro longa-metragem dirigido por Aaron Schimberg, Ingrid (Renate Reinsve) se depara com o retrato da mãe de Edward (Sebastian Stan), personagem principal do filme, pendurado na parede do apartamento dele. Com alguma surpresa, ela pergunta se a mulher que aparece na foto é a mãe de Edward e se a criança que está com ela na foto é o próprio Edward. A resposta é positiva para ambas as questões. 

Para além da curiosidade imediata que o vizinho lhe desperta, o que parece deixar Ingrid tão surpresa é a constatação de que nem sempre Edward teve a mesma aparência: o rosto disforme causado por uma doença chamada neurofibromatose. Para nós, espectadores, a cena também se presta a reforçar a citação e o tributo do trabalho de Schimberg ao belíssimo e clássico filme de David Lynch, O Homem Elefante, onde também o retrato da mãe — alusão à mãe ausente — tem uma importância simbólica central para o personagem principal e para a narrativa. 

Em ambas as obras, esse personagem é um homem que carrega em seu corpo uma severa deformidade, elemento que os inscrevem na tradição do chamado body horror. O gênero, bastante em voga nos últimos tempos graças ao sucesso de A Substância (The Substance, Coralie Fargeat, 2024), explora os limites do visível a partir de desvios, metamorfoses e alterações físicas extremas, desafiando o olhar para além daquilo que, em relação ao corpo humano, nos soa familiar. Sensações de desconforto, repulsa e medo frequentemente emergem desse confronto com aquilo que, em algum lugar, nos perturba. Os três filmes aqui citados jogam dentro desse terreno de convenções de um mesmo gênero.

Porém, mesmo tendo se interessado por contar a história real de um homem cujo aspecto desviante é alvo de repulsa e ódio por parte de sua comunidade, o filme de Lynch é também um melodrama — que, aliás, segundo a categorização de Linda Williams, seria, junto ao horror e ao porn, um outro gênero do excesso. Aos poucos, vamos descobrindo que John Merrick, o homem elefante, é uma pessoa extremamente doce (em relação a isso, a voz de John Hurt é frequentemente evocada em sua interpretação do personagem), vítima de uma injustiça irreparável. Dentro dessa linhagem, poderíamos pensar ainda em um quarto filme, Marcas do Destino (Mask, 1985), de Peter Bogdanovich, que também retrata um personagem real, Rocky Dennis, cujas gentileza (mais uma vez a voz é central), inteligência e perspicácia, supostamente, não estariam de acordo com sua aparência física monstruosa — resultado de uma displasia óssea craniana. São filmes que, de maneiras diversas, procuram retratar, por meio de seus personagens, as faces perversas da intolerância e da discriminação, desafiando as ideias preconcebidas e as reações primitivas enraizadas no senso comum. Concentremo-nos, a partir de agora, nos títulos recentes aqui evocados.  

Por lidarem com a maleabilidade dos corpos e com excessos de mise en scène que buscam colocar em evidência tais aspectos desviantes, tanto A Substância, quanto Um Homem Diferente podem ser evocados enquanto espécimes de um mesmo gênero. Desta forma, temos visto alguns textos críticos frequentemente aproximando ambos os filmes a partir desse enlace. Gostaríamos, entretanto, de explorar aqui em que medida tais filmes diferem em suas propostas e optam por seguir distintos caminhos possíveis dentro do chamado body horror.

No filme de Fargeat, há menos o interesse em transformar a repulsa em empatia do que em explorar os limites do obsceno, num movimento crescente de provocação do/a espectador/a. Tudo é escatologia, desde o corpo deformado de Elisabeth/Demi Moore, até o corpo perfeito de Sue/Margaret Qualley. O sentido original do termo “escatologia”, derivado do grego, diz respeito ao “estudo do fim dos tempos”; em contextos teológicos e religiosos, a escatologia trata do fim dos ciclos, fim dos tempos, do fim moral das pessoas. A partir do momento em que o fim passa a estar associado à ideia de degradação, o sentido original grego e o atual (ou seja, aquele mais comumente associado à ideia de “escatologia”) passam a se encontrar. No filme de Fargeat, eles estão unidos, tudo é degradação e desintegração, fim de ciclo, fim do mundo. 

O corpo perfeito, em A Substância, tira seu alimento da degradação dos outros corpos e da degradação moral do próprio corpo social. Por isso, da maneira como é mostrado no filme de Fargeat, esse corpo é obsceno — aliás, eis mais um termo/conceito que fala de limites, daquilo que é aceitável ou tolerável. É a mulher objetificada, fatiada em pedaços — bunda, pernas, peitos, caras e bocas — tal como já denunciava Laura Mulvey em seu clássico texto dos anos 1970. Mas Fargeat escala em sua afronta. O corpo perfeito em A Substância é grotesco e repulsivo porque é o reverso da moeda possível ao corpo deformado de Elisabeth/Demi Moore; juntos, eles são apenas uma coisa, como o filme bem enfatiza. 

E se um corpo pode ser perfeito, qual é o problema de exigir que ele seja também jovem e sexy? Se admitimos como CEO de uma emissora de TV um misógino reacionário, por que também não admitiríamos que ele seja asqueroso e brega? A atriz Margaret Qualley teve que usar próteses para entregar a personagem Sue; estamos muito longe de qualquer flerte com o realismo, mesmo assim, o filme de Fargeat agride lá onde ele resvala na crítica social. Seria a diferença entre o obsceno e os padrões do senso comum, afinal, apenas uma questão de escala? Se não há limites para a degradação, por que deveria haver limites para a mise en scène do depreciativo? 

O gênero cinematográfico se afirma lá onde o filme desvia daquilo que reconhecemos enquanto realismo narrativo, já dizia Linda Williams em seu clássico texto sobre os gêneros “sensacionalistas”, que exploram o corpo humano de maneira explícita ou grotesca. Nos filmes aqui citados, há desvios caracterizados pelo excesso, mas há também, no caso de O Homem Elefante e Um Homem Diferente, fortes componentes que vão ao encontro da normatividade narrativa, de maneira que os desvios vão se dar em certas brechas que a narrativa realista proporciona. Linda Williams fala em “lapsos” por excesso de espetáculo e/ou pela exibição de emoções primitivas. Ou seja, o jogo com as sutilezas também é importante para a construção do clima e, por isso, não é absurdo dizer que Um Homem Diferente dialoga tanto com o body horror, quanto com a comédia de humor ácido.

O filme de Aaron Schimberg se divide em duas partes. Edward é o personagem principal da trama, mas, em determinado ponto da narrativa, ele passa a ser Guy. Essa passagem cinde o filme. Na primeira metade, ainda enquanto Edward, nosso personagem é o homem que vive com uma rara condição que afeta drasticamente a aparência de sua face, mas também sua autoestima e confiança. Num segundo momento, enquanto Guy, tendo passado por um tratamento experimental, sua fisionomia encontra um aspecto normativo.

Na primeira parte, Schimberg tenta inserir seu personagem dentro de um contexto de normalidade cotidiana — tal como o faz Bogdanovich, com seu Rocky Dennis, e ao contrário do personagem de David Lynch, John Merrick, que vive socialmente apartado. Edward tem uma profissão, é ator — embora tenha dificuldades para conseguir grandes papéis —, e vive de maneira independente. Ele, no entanto, parece sofrer de uma insegurança importante. Seus vizinhos, por exemplo, se sentem à vontade para lhe vomitar lugares-comuns sobre como desenvolver sua autoconfiança: é preciso se aceitar, praticar jiu-jitsu etc.

É com sua nova vizinha, Ingrid, que uma relação decisiva para os rumos da trama irá se estabelecer. Dramaturga, ela passa a se interessar avidamente pela vida de Edward e a frequentar sua casa, sempre lhe colocando várias questões. Ingrid, claramente, é uma espécie de alter ego do diretor, que, aliás, faz uma aparição à la Hitchcock na cena em que, em um bar, ela explica a Guy seu dilema moral em se apropriar da história de um homem que vive com uma condição estigmatizante para construir sua própria obra (lembremos que este é o segundo filme que Schimberg realiza com Adam Pearson, ator que realmente tem neurofibromatose).

Inicialmente, Edward não sabe muito bem como lidar ou interpretar o interesse que ele provoca na vizinha. O desconforto, no entanto, é um sentimento que parece acompanhá-lo permanentemente, provocando mesmo uma contínua defasagem entre o personagem e o seu contexto (talvez, todo o filme seja sobre isso, afinal). Tal descompasso é explicitado na sequência de abertura do filme, sutilmente cômica: num set de filmagem, Edward erra grosseiramente o tom da interpretação. “Menos um ataque do tipo AVC e mais uma tontura”, tenta orientá-lo o diretor da cena. O desajuste e a sensação de deslocamento não desaparecerão na segunda parte, quando ele se submete ao procedimento que o deixa com uma aparência totalmente nova. 

Um ponto de encontro importante entre Um Homem Diferente e A Substância é justamente a metamorfose física pela qual passam seus personagens. É nesse sentido apenas que o filme de Schimberg talvez dialogue mais com Cronemberg ou John Landis do que com David Lynch ou Peter Bogdanovich. Tal como um homem que se transforma em mosca ou em lobisomem, Edward passa por um processo doloroso, descama, pedaços de pele caem, o rosto derrete para que ele se transforme num novo homem, Guy. 

Quando se transforma em Guy, o personagem principal de Um Homem Diferente parece entrar numa nova etapa de sua crise existencial. Novo homem, novos e velhos fantasmas. A insegurança de Edward/Guy não necessariamente parece se esvair com a sua nova aparência normativa e isso fica evidente a partir do contraste entre ele e Oswald (Adam Pearson). Desenvolto, uma espécie de “hipster super cool” com sotaque inglês (o que lhe dá um charme especial), Oswald aparece na segunda parte do filme para roubar de Guy o personagem de Edward na peça escrita por Ingrid. E ele não rouba apenas o personagem — que, segundo suas palavras, ele teria nascido para interpretar —, mas rouba toda a vida idealizada de Edward/Guy, inclusive o amor de Ingrid. 

Com sua nova fisionomia, vivendo a experiência da peça, Guy tem de encarar seus piores monstros e, em determinado momento, tudo lhe sai do controle. A verdade é que Guy abandonou Edward muito antes que Oswald lhe viesse roubá-lo definitivamente, mas a forma com que Guy/Edward se sente rejeitado e aviltado mergulha a trama numa espécie de sátira melodramática. A partir daí, nosso personagem principal é obrigado a assistir, em estado catatônico, à felicidade da vida conjugal de Oswald e Ingrid (ou sua própria vida usurpada). 

Tanto A Substância, quanto Um Homem Diferente são filmes sofisticados à sua maneira no agenciamento dos diálogos que estabelecem, o que os coloca enquanto destaques importantes e instigantes dentre as produções cinematográficas do último ano. Ainda sobre o filme de Schimberg, é obrigatório evocarmos dois elementos que contribuem para que ele consiga nos fazer conectar de forma visceral tanto ao personagem quanto ao seu intrincado universo de referências: a trilha sonora e a filmagem em 35mm, que dão ao filme um ar vintage atemporal.