The Pitt

por Álvaro André Zeini Cruz

Ao longo da primeira temporada de The Pitt, tornou-se relativamente comum terminar um, outro, muitos episódios com os olhos marejados. Será possível que um procedural médico volte a emocionar sem apelações como Chasing Cars e toda a receita “meloindie” reproduzida desde Grey’s Anatomy? Afinal, o que tanto me comove numa série em que, muitas vezes, eu sequer sei os nomes dos personagens? 

Dos mesmos criadores de E.R., The Pitt retoma certa estilística da série anterior, aplicando-a agora no formato consagrado por 24 horas. Nessa emergência de Pittsburgh, são 15 horas de um plantão, perseguido por uma câmera que percorre os espaços tal qual os médicos, isto é, sob uma adrenalina racionalizada para lidar com o entra e sai de vida ou morte. É um expediente já utilizado na série anterior, mas que retorna agora para interligar o tempo a partir de um olhar que se desprende, desencontrando e reencontrando médicos e pacientes de um caso a outro.

O chefe do plantão é um rosto remanescente da emergência anterior, mas o personagem é outro: Noah Wyle não é mais o Dr. Carter, mas Dr. Michael Robinavitch (ou simplesmente Robbie), o médico atendente que ensina enquanto salva-vidas (ou vice-versa, porque há certa congruência entre essas coisas). Os perfis dos doutores-aprendizes recaem sobre o que já pode se considerar uma conjugação arquetípica às séries médicas: há a moça insegura que tenta driblar a pressuposição do apadrinhamento da mãe (médica no mesmo hospital), a competitiva que ora acerta, ora mete os pés pelas mãos, o George O’Malley que é repetidamente atingido por fluidos diversos, um típico lovable looser. Até aqui, nada exatamente novo. A pergunta segue: o que me comove em The Pitt?

A questão do tempo contínuo camufla um tempo descontínuo, central à série. Isso porque entre as chegadas e partidas de uma emergência em que as filas não acabam, há casos que vão ficando pelo caminho, não porque os médicos desistem, mas porque precisam do devido tempo. Doctor Robbie comanda a equipe justamente porque, mais do que um administrador de pessoas, é um regente dos tempos singulares que cada paciente ou familiar precisa entre a cura e a perda; esta última sempre cercada por suas companheiras, a negação e a resignação.

O mosaico de histórias é imenso e, embora haja situações episódicas, a maioria constitui arcos. Nesse sentido, The Pitt é uma série com características muito próprias: restringe seu universo narrativo ao local de trabalho, contrariando a tendência das séries evolutivas (na qual se insere) de desdobrar outros espaços da vida privada. É verdade que muito dessas vidas transbordam dentro das fronteiras desse universo narrativo: inseguranças, vícios, traumas e tornozeleiras eletrônicas são alguns dos testes aos médicos sob pressão. As histórias se esbarram, por vezes, emaranham-se nós, e talvez esteja aí a atadura de uma série representativa de um gênero esgarçado. The Pitt estabelece correlações, mas nunca paralelos simplórios, como fazem tantas outras.

Nessa delimitação espaço-temporal, personagens chegam e partem com problemas próprios e diversos, sem que o drama do paciente sirva como metáfora à evolução dos médicos. É o oposto de Grey’s Anatomy, onde os paralelos são estabelecidos pela dramaturgia melodramática e reforçados pela narração de Meredith Grey; os pacientes chegam ao ex-Seattle Grace (agora Grey-Sloan) para tratarem a saúde, mas acabam deixando lições de vida preciosas e coincidentemente pertinentes aos arcos dramáticos pessoais da Dra. Grey e sua turma. Em The Pitt, os dramas abundam sem sincronicidades de qualquer sentido; pelo contrário, reina o caos. Alguns ecoam, como o da médica que aborta espontaneamente em meio ao plantão, e o da adolescente, que tenta fazer um aborto legal contra a vontade da mãe. Outros são insolúveis, como da moça que aparenta ser vítima de tráfico sexual. O que sustenta The Pitt, no entanto, são os casos dilatados, em que a morte é suspensa não porque uma vida pode ser salva, mas por que as vidas ao redor dessa vida (em risco, em término) precisam ser salvas.

É o caso dos irmãos que, contrariando as recomendações do Dr. Robbie, decidem entubar o pai idoso, sacrificando o bem-estar desse paciente terminal em prol do tempo que precisam para aceitarem a perda iminente. Concomitantemente (mas sem paralelos fáceis), Dr. Robbie respeita o tempo — e dilata-o em exames que diagnosticam reiteradamente o incontornável — do casal de pais cujo filho adolescente teve morte cerebral. É uma trama cadenciada, que passa pelo choque dessa perda inesperada (o garoto havia tomado um remédio para varar a noite estudando), atravessa esse prolongamento dos exames para, depois, constatada a morte, adentrar o tempo da discussão que salvará outras vidas — a decisão acerca da doação de órgãos. São tramas que se estendem, entrecortadas em episódios do início da temporada. As elipses abertas enquanto a câmera desvia de um caso a outro vão adensando os conflitos, os descompassos e entendimentos entre os personagens envolvidos. Na segunda metade da temporada — nas pontas do tiroteio que desvia do clichê ao não acontecer dentro do hospital — outros dois plots ecoam-se: o da menina que morre afogada depois de salvar a irmãzinha, e o do garoto com sarampo, cuja saúde está à mercê da mãe negacionista e do Dr. Google. Nessas correlações, The Pitt percorre as tragédias eventuais, que acontecem de uma hora a outra, mas, sobretudo, descobre as tragédias que só os seres humanos são capazes de alimentar nas entranhas, causando estragos quando externalizadas.

Por que The Pitt me comove tanto?

Porque entre as movimentações dessa câmera-médica, que assiste no amplo sentido da palavra — ou seja, auxilia e nos permite ver —, The Pitt faz exames clínicos e radiografias de um microcosmo humano atual. Diagnostica aquilo que aterroriza a todos, e que é a base da dramaturgia: a dor como um vislumbre da morte em vida; a dor como sinal de que ainda há vida ou de que há alma ainda a ser corroída. Não é à toa que, para se refugiar da complexidade desse mosaico humano, o Dr. Robbie precise recorrer aos animais — mais precisamente aos adesivos de bichinhos sorridentes nas paredes de uma sala pediátrica. Para sobreviver à dor alheia ou à própria dor, Robbie encara a raposinha sorridente; mais tarde, sucumbe em meio a contraditória floresta de animais felizes, que cerca uma pilha de corpos acumulados no centro da sala. A floresta artificial, concebida para anestesiar olhares infantis doloridos e assustados, é o lugar seguro e ambíguo ao médico que luta não contra a morte, mas para confortar o que ainda resta de vida, para que a vida remanescente não se transfigure em mais dor e mais morte. A esse médico, só o que resta de beleza é o inumano, o impalpável, o bidimensional colorido nas paredes que o reabastece minimamente para seguir salvando vidas.

Se The Pitt rejeita o paciente-metáfora, é porque talvez não haja mais profundidade estável num momento em que tudo irrompe, vindo à tona em socos ou tiros. Tudo é doença, tudo é sintoma, tudo é dor, tudo está entre e em nós. Resta o refúgio dessa imagem desenhada, não realista, para que se tenha um pouco do paliativo que traz algum conforto — o tempo. Contra sintomas contemporâneos, o tempo é a principal receita de Dr. Robbie; a câmera opera como uma especialista espacial, ciente de que o desvio de um passo é também um instante não observado, absorvido de outra forma.