por Álvaro André Zeini Cruz

Sob o título preciso O Império do olhar, o crítico Ricardo Vieira Lisboa enxergou em The Batman, um jogo intrincado entre o que é visto e quem vê, podendo o sujeito do olhar estar à vista ou não. É uma questão posta pelo próprio protagonista logo no início, quando a voz over e o sumário narrativo lembram que o canhão de luz sinaliza que Batman age nas sombras, invisível, em qualquer lugar. Desta forma, Batman se apresenta como um herói que causa medo por conta das limitações da visão diante de um efeito físico, enquanto sua sombra imediata assume a posição de um voyeur que se utiliza da invisibilidade social para constituir um olho-poder. Nesse sentido, a crítica de Lisboa precede essa introdução do herói (objeto – ou não – do olhar), começando pelos planos iniciais do filme de Matt Reeves, isto é, pela constituição primordial dos olhares subjetivos do vilão. São olhares ambíguos que, ora se camuflam sob uma ilusão objetiva, ora postergam a revelação de sua natureza subjetiva. Estabelecem, assim, a charada duradoura – estamos posicionados a partir de que olhar?
O diagnóstico dessa subjetividade é o ponto de partida para que Lisboa siga uma jornada da constituição dos olhares parciais, que são flagrados retribuindo-se entre si. Por isso, sua crítica se centra na relação entre Homem-Morcego e Mulher-Gato, e na intermediação dada entre eles por meio de objetos especulares elementares (espelhos, retrovisores) ou extensores ultra tecnológicos (as lentes de contato). Isso posto, peço licença a Lisboa para emprestar seu ponto de partida e desdobrá-lo noutro sentido, debruçando-me menos sobre esses aliados-amantes (platônicos, por isso mesmo, presos aos olhares) do que na relação entre Batman e este arqui-inimigo inaugural.
Os encontros entre Batman e Charada são mediados por superfícies: ao longo da trama, por telas eletrônicas com imagens carregadas de glitches; da crise ao clímax, por barreiras analógicas, ainda mais ordinárias. É pela vidraça de uma lanchonete que Batman encara pela primeira vez o rosto limpo, desmascarado, do vilão, numa cena cujo plano de abertura remete ao quadro Nighthawks, de Edward Hopper. Como Hopper, Batman permanece do lado de fora, mas se aproxima para ver e ser visto. É quando, emoldurado pelo flare das luzes rebatidas na vitrine molhada, olha, a um só tempo, para Charada e para a câmera, denunciando que o ponto de vista pelo qual vemos o herói corresponde à subjetiva do vilão. O contracampo não responde da mesma maneira; enviesado, o olhar de Charada indica um retorno ao regime da objetividade, que se concretiza com um movimento de câmera autoconsciente no desfecho da cena: quando todos saem, o olhar se ergue sobre a xícara de cappuccino no balcão para revelar a pista de que um plano maléfico incógnito continua em curso.
Esse indício é renovado pelo vilão quando, em Arkham, Batman o confronta a partir do vidro gradeado, que distribui entre campo e contracampo um aspecto pixalizado. Ocorre o diálogo-clímax, naquela que, ironicamente, é a cena mais iluminada do filme: Charada discursa sobre o caráter especular entre ambos, órfãos-formas semelhantes, mas distanciados pela diferença dos backgrounds que os cercam (algo que se dá de maneira física na cena). Similares que, no plano do vilão, se complementam numa conjugação entre vigiar e punir graças a esse encontro dos contrastes. Se isso tudo é reiteradamente colocado a um herói que é a própria sombra, e que cujo poder está em usar a afinidade tonal para camuflar-se, nada mais natural que a provação o coloque contra a luz, tal qual o símbolo posto contrastado ao refletor (mas afinado à escuridão da noite).
No mais sombrio dos Batmans – sombrio da maneira mais elementar, isto é, na parca presença da luz –, Charada clona sua imagem a partir da tela luminosa que, na contemporaneidade, cria cortinas de fumaça, turva as vistas e replica os males. Seus seguidores-réplicas não chegam a formar a horda do filme final de Nolan, mas, armados, causam estrago. Mas não é contra essas imitações que o Morcego investe no clímax que constitui a síntese imagética de The Batman: se o herói é introduzido pela própria narração – que surge junto ao mosaico de telões numa releitura da Times Square –, a luta final o colocará corpóreo contra um imenso painel de Led, que, tomado pela publicidade eleitoral, ameaça desabar sobre um estádio alagado, eletrocutando os invisíveis comuns – ou seja, os cidadãos – de Gotham. Entre o jogo das subjetivas e essa batalha com o império das telas, Reeves alicerça um novo universo imagético para o Homem-Morcego, que só se afrouxa no miolo sonolento, quando o diz-que-diz, a fala, surge para competir com a questão central, já bem diagnosticada no texto de Lisboa: o olhar. Que os próximos sejam mais enxutos, para que a escuridão continue como desafio ao olhar e contraste aos Leds (ou periga afinar-se ao blábláblá em prol da produção de melatonina).
* a crítica de Ricardo Vieira Lisboa para o À Pala de Walsh pode ser lida aqui.