Por Juliana Maués
Ultimamente, tenho tido muita dificuldade para falar e escrever sobre e mesmo parar ver cinema. Já pensei neste como um dos problemas que emergem quando se vive num cenário estéril, mas enquanto o cinema contemporâneo demonstra, sim, os sinais de desgaste próprios a uma forma de arte que já traçou o caminho trilhado e agora precisa improvisar novas trajetórias, o vazio é algo que ainda lhe passa ao largo. Talvez esteja em mim, esse cansaço. E o que eu aprendi a fazer nessas ocasiões – o que talvez muita gente tenha aprendido – é voltar para casa, porque é sempre a partir de casa que a gente pode se lançar de novo ao mundo. Por isso, este texto é sobre O Natal de Charlie Brown.
É um filme singelo, isso é bem fácil de dizer. São 23 minutos familiares a qualquer um que já tenha se debruçado a ler Peanuts a perder de vista ou mesmo encontrado com uma tira por aí, perdida no acaso da vida. A própria estrutura fragmentada dá a impressão de estarmos diante de uma colagem de pequenos quadros, que nos surgem três a três, vezes quatro a quatro; os personagens carregam as características e os traços de sempre e representam a única parte literalmente animada a circular por cenários ultra-coloridos e que seriam totalmente estáticos não fosse pela neve que cai abundantemente nos primeiros minutos do filme, ao som de Christmas Time is Here, essa música que se tornou icônica de tantas vezes referenciada. Estamos em 1965 e, de lá para cá, o natal foi representado à exaustão, atacado, criticado, reinventado, mas o concentrado da sua essência se mantém todo neste curta.
O que costura todos esses retalhos é um Charlie Brown ansioso, como sempre, mas que agora perdeu o sentido do natal e em todo lugar que procura encontra sempre a palavra terrível, o capitalismo em sua pura forma: dinheiro. É a irmãzinha que o pede ao Papai Noel, o cachorro que espera ganhá-lo num concurso de decorações natalinas, a psiquiatra neurótica disfarçada de criança rabugenta que reclama dos presentes estúpidos e sem valor de todos os anos. Seria provavelmente edificante dizer que o bom e velho Charlie encarna o herói em sua jornada que resultará em auto-conhecimento e grande transformação, mas, já disse, o filme é singelo e o que temos aqui é apenas a simplicidade de um dia na vida. Começa já de manhãzinha, passa por todos os cenários conhecidos, a conversa no muro, a banquinha de psiquiatria, a casa do cachorro fiel, o ringue de patinação, todos esvaziados da vida adulta nesse microcosmo criado por Charles Schulz, que é a infância e não é.
Culmina, enfim, na escola – e todos hão de lembrar pelo menos de uma das melhores cenas de dança do cinema, coreografias malucas no palco do teatro ao som de, mais uma vez e sempre, Vince Guaraldi. Charlie foi levado a acreditar que a participação numa verdadeira atividade natalina, no caso dirigir as crianças numa peça temática, revelará enfim todos os sentidos ocultos, será a redenção sua e do natal. Ela não salva nenhum dos dois. Ele é mandado então numa segunda missão, essa sim das mais típicas e infalíveis que há: escolher uma árvore de natal. Mais uma vez, não funciona. Acontece que Schulz sabe que o natal, mesmo com todos os seus rituais, os ditos originais e os acumulados ao longo dos anos, nunca foi sobre experiência – ou na verdade, é sobre uma bem particular: aquela de contar estórias. O natal é sobre narrativa.
Sim, narrativa cristã, como não poderia ser diferente. Mas mais narrativa que cristianismo, se ouso dizer – ou pelo menos fica aqui o meu desejo. É sobre essa criança, uma criança qualquer, que nasce num ambiente pobre, conflituoso e hostil, mas anunciada por uma estrela, com a missão de guiar a humanidade ao seu destino. É assim que Charlie ouve da voz do melhor amigo, num palco à meia-luz, cena dramaticamente construída numa linguagem que foge ao corriqueiro das demais cenas e paralisa a história do filme para dar lugar àquela que interessa e ao seu arauto. Nada mais precisa ser explicado, pois que narrativas, as boas, têm esse poder – e o cinema bem o sabe – de não precisarem ser esmiuçadas, decompostas, contestadas em sua verossimilhança. A elas basta a verdade e essa geralmente se sente, sempre que se permite senti-la. O constantemente nervoso Charlie Brown nos presenteia com um de seus mais satisfeitos sorrisos, daquele tipo que sorri para dentro, para si mesmo, e sai levando a árvorezinha desdenhada. Chega no espaço aberto com sua pequena, o quadro tomado por um céu de estrelas e nada mais. Sempre haverá estrelas a nos orientar e estrelas sempre haverá mesmo quando não houver quem elas orientem – e, nesse 2017 de tão maus presságios que se aproxima, esse é o horizonte que eu quero ter.
A história segue, mais pontos são traçados, mas o fundamental fica aqui: fé na narrativa. Não em uma pretensa verdade universal, mas em uma história contada com o talento de um artesão consciente que, de repente, chega à verdade particular em cada um de nós. Peanuts tocou a minha verdade há muito tempo e esse filme, revisto todo fim de ano e provavelmente o único realmente a merecer o status de clássico dentre os tantos da parceria Schulz-Melendez, pode não ser uma obra grandiosa em nenhum sentido, mas é sempre um aconchego. Não sei mais se ele habita em mim ou eu nele, mas a relação é de casa. É em casa também que publico este texto, para a última Pós-créditos, revista que tive o prazer de ajudar a editar e publicar ao lado de pessoas queridas, que foi tal qual um lar durante os últimos meses, e da onde agora me despeço. Esperemos que ambas essas casas, na qual entramos e permanecemos apenas por algum tempo, sejam de ajuda para sairmos revigorados a encarar nosso céu de estrelas, todas as luzes e desafios do porvir.