Por Álvaro André Zeini Cruz
Em “A queda de Reichenbach”, último episódio da segunda temporada de Sherlock, Molly, a médica legista constantemente esnobada pelo detetive de Baker Street, o confronta: “Você fica triste quando acha que ele não está vendo”. O olhar de Sherlock, então, desvia momentaneamente das moléculas no microscópio e revela aquele a quem Molly se refere – seu fiel escudeiro, John Watson. Molly continua: “sei o que quer dizer, ficar triste quando achamos que ninguém está vendo”. Sherlock replica – “Você consegue me ver” –, mas é a legista quem dá a palavra final – “Eu não conto”.
O ilustre e estrambótico detetive criado por Arthur Conan Doyle, interpretado com uma camada a mais de excentricidade por Benedict Cumberbatch, incorpora uma dualidade contemporânea na série produzida pela BBC. Desde os escritos de seu escudeiro-narrador-personagem que Sherlock Holmes zombava dos sentimentos e das paixões, mas atendia minimamente aos preceitos de sociabilização. Já o Sherlock de Cumberbatch não é dado a conexões além daquelas produzidas por seus céleres neurônios, cujo trabalho incessante consiste em encadear pistas e solucionar mistérios. Ele até convive com Molly (em quem causa um crush), com seu competitivo irmão Mycroft ou com sua locatária, Sra. Hudson (a quem trata como empregada), mas através de contatos que têm como único objetivo a resolução do mistério. A efemeridade dessas relações se equivale à velocidade do pensamento de Sherlock, ilustrado estilisticamente nas anotações e fórmulas que surgem e desaparecem da tela também num piscar de olhos.
Vistas algumas sequências de Sherlock, aliás, poderia até se especular se sinapses tão aceleradas não estariam extravasando o corpo e aquecendo o mundo ao redor, a ponto de fazê-lo evaporar: a paisagem londrina não é apenas atingida pela famosa fog; ela é a própria névoa, pronta a se dissipar sem proporcionar o mais íntimo dos contatos – o toque. A metrópole nada mais é do que um recorte do mundo contemporâneo, assim como o Sherlock Holmes sociopata de Cumberbatch é produto desse mesmo tempo em que as relações se tornam informações e as informações pululam e escapam dando piruetas em frente aos olhos anestesiados (“Você vê, mas não observa”, diz o detetive no conto O mistério da boêmia). O Sherlock da série homônima da BBC vai além da excentricidade proveniente da própria literatura; é uma potencialização do sujeito líquido-moderno .
Zygmunt Bauman aplicou o conceito de liquidez à contemporaneidade, dando destaque às relações amorosas, que, segundo ele, adquiriram o valor de item de consumo, pronto a ser descartado assim que findado o interesse. Antes um solitário, Sherlock é, nesse cenário, o homem sem vínculos, personificação máxima desse mundo líquido que se esvai sem sobreaviso. O paradoxo se dá no ofício de Holmes, que busca pistas e fatos concretos para atingir aquele que é seu único compromisso: o crime e, em última instância, a morte.
Para Bauman, na morte e no amor não se pode penetrar duas vezes, pois são eventos únicos, blocos impenetráveis (Bazin faz uma analogia parecida ao discorrer sobre a imagem cinematográfica da morte e do sexo). Em Sherlock, a morte é o primeiro bloco de concreto em meio ao rio caudaloso que toma tanto o espaço físico quanto a mente do protagonista. E é a partir dessa única estaca que Sherlock chega ao outro corpo rígido alicerçado na trama – o amor que sente por ninguém menos do que John Watson, o assistente que crê que “o estudo próprio para a humanidade é o homem”.
Sherlock se interessa pelos rastros da humanidade; a trata como meio, não como fim. Para que seu olhar clínico consiga compor um mosaico, precisa de alguém com profundo interesse no outro – Watson. A relação (mais cortês nos livros e explosiva na série) é intermediada pelo fascínio que Sherlock tem pela morte e que Watson tem pelo estágio que a precede: o perigo. Desponta daí o amor e, embora a série brinque com a possibilidade de uma relação homossexual, o sentimento que se consuma se desvencilha das questões corpóreas (e, consequentemente, das sexuais). A relação entre Sherlock e Watson se dá como uma conjunção única entre espíritos e energias, movidos pela pedra fundamental da morte. Amor e morte tornam-se duas faces de uma mesma moeda, que gira indefinidamente por um espaço etéreo, onde todo o resto evapora. E essa dicotomia atinge em cheio mise en scène e estilo da série.
Sherlock oscila entre a estética da montagem alucinante e dos grafismos estilizados (com inserts de mapas de Londres e textos em SMS) e a cena clássica, das composições rijas e dilatadas, geralmente guardada para os momentos em que a moeda amor/ morte emerge do nevoeiro. Assim, um raccord de movimento, normalmente aplicado ao movimento dos corpos, é subvertido e aplicado ao movimento de uma câmera em cambalhotas, não para uma simples mudança de plano, mas para uma radical mudança de espaço e cena. Por outro lado, os embates de Sherlock com os representantes da morte (Moriarty, Irene Adler, o taxista) ou as cenas em que seu envolvimento com Watson se adensa através do perigo, recobram o classicismo, reorganizando a narrativa não mais para o que é supérfluo (as informações que invadem a tela), mas para o que realmente importa – os olhares, os diálogos, os tempos, e todo o resto que está entre essa tríade (e que não é pouca coisa).
O embate entre o detetive e seu arqui-inimigo, Moriarty, no apartamento na Baker Street, é um dos momentos em que a decupagem se torna uma parede de tijolos bem delineados: cada plano é um bloco inflexível concentrado numa porção dos corpos, realçados pelo espaço, esse sim liquefeito pela profundidade de campo escassa. Rostos que, por sinal, são esculpidos como muralhas, cujos contornos são deformados pelo plongée. Essa intransigência dos planos se acentua, por exemplo, no encontro entre Watson e Irene. Os corpos são pressionados contra as laterais dos planos e do contraplanos; o fato de jamais extravasá-los, no entanto, rememora que trata-se de um confronto verbal cujo vigor não deve ser maleabilizado pelo movimento de câmera. A câmera só se move quando há efeito prático para isso (ou seja, quando os personagens se movem). As linhas além das faces e das molduras tornam-se ainda mais diluídas.
Adaptação à primeira vista embebida de uma estética que escorre entre os dedos (na qual estão contidas a fragmentação e a publicidade), Sherlock guarda em seu âmago a construção de tijolos da mise en scène clássica e o cimento que dá liga aos blocos – o drama. Por trás da aparente liquidez que corre, da mente genial, mas esvoaçante, há uma presença que reage à outra da forma mais nobre, mas só diante do que é realmente essencial: a iminência da morte. Watson guarda um coração, músculo rijo que bombeia sangue. Tal fluido interessa a Sherlock, que parte de um princípio bastante elementar: a observação da forma depende do contraste. Contra a aguaceira insípida dos tempos, pouco se vê; é preciso contaminá-la com o mais ilustre dos líquidos – o sangue que corre das veias. Para, aí sim, realizar um estudo em vermelho.
—
Deixo registrado o agradecimento aos alunos que me apresentaram à teoria de Bauman.