Por Álvaro André Zeini Cruz
Enquanto a cinefilia se digladia por conta do discurso social no filme de Ana Muylaert – imbróglio cujo entorno contou até com participação de Cláudio Assis, nosso Lars Von Trier tupiniquim –, no reino da televisão (far, far away do grosso da intelligentsia), o prognóstico de uma sociedade surge acidentalmente vinte e cinco anos após as caudalosas águas pantaneiras encharcarem a “vênus platinada”.
A TV Globo, principal emissora do país desde a década de 1970, passa por um momento delicado: tenta entender o que acontece com seu prime time, seu horário nobre. Para a TV aberta – sustentada pelo mercado publicitário –, o principal sintoma de que algo vai mal (e talvez o único que importe) é a derrocada da audiência. O declínio gradual da novela das 9 (outrora das 8) nos últimos anos tornou-se uma queda vertiginosa com a findada Babilônia, de Gilberto Braga, Ricardo Linhares e João Ximenes Braga. Esperava-se que essa crise – sobre a qual muito se especulou, sem que, no entanto, se chegasse a um diagnóstico preciso –, fosse contornada com A regra do jogo, de João Emanuel Carneiro, “autor de Avenida Brasil”, como as chamadas fizeram questão de ressaltar. Até agora, nada (pelo menos no ibope; a novela é ótima).
A procedência de uma parcela do tsunami que afeta a Globo é conhecida: provém do Mar Vermelho; mais especificamente de Os dez mandamentos, trama bíblica da Record, espécie de novela-parque de diversões (mais para Hopi Hari do que para Disney World, diga-se de passagem) que realoca o espectador para loopings bem distantes daqueles alardeados pelos noticiários. A sensação de déjà vu é notável; a lição, ensinada lá atrás pela Manchete: após a aceitação da trama crítica e dos personagens amorais de Vale Tudo – exibida num período de redemocratização e otimismo –, o telespectador, logo saturado, aproveitou a primeira crise da nova democracia para afugentar-se no colo de Juma Maruá (Cristiane Oliveira) em Pantanal. Diante do momento sócio-político e da atual falta de reação de A regra do jogo, a emissora dos Marinho sacou a velha cartilha e, mais do que depressa, abortou a vindoura trama política de Maria Adelaide Amaral e Vincent Villari. Convocou seus principais novelistas-guias turísticos: Benedito Ruy Barbosa, especialista nas profundezas de nosso interior, e Glória Perez, o Guia dos curiosos em culturas exóticas para principiantes.
Mas, afinal, o que há de tão incômodo aos olhos na naufragada Babilônia e em A regra do jogo, que já começa a lançar sinalizadores e preparar os botes salva-vidas? Histórias habitadas por personagens corruptas e atravessadas por crimes. Os tons são distintos: enquanto Carneiro trabalha com a alegoria, o trio anterior aproximou-se do realismo; opções que podem explicar uma eventual recuperação da atual novela se comparada à antecessora. Mas deixemos de futurologia; permaneçamos na trama concluída, que, durante seus 143 capítulos, foi dissecada sempre a partir de um fator extra-diegetico: o ibope.
O primeiro dedo em riste apontado para Babilônia veio com o beijo gay entre Fernanda Montenegro e Nathália Timberg, apresentado numa das primeiras cenas do capítulo inicial. Teria sido, segundo a imprensa especializada (que, diga-se de passagem, é incipiente) e levantamento feito pela própria emissora, o convite à debandada que recaiu sobre trama. A própria Fernanda Montenegro, entretanto, fez uma constatação menos limitante: tocou mais a fundo ao declarar que, mais do que homofóbico, o público não queria era ver uma “negritude tão ascendente e vitoriosa, sem subserviência”, como a retratada pela trama. Com um elenco amplamente composto por artistas negros em personagens que os tiravam dos lugares comuns, a declaração da atriz faz todo sentido. A ferida, no entanto, poderia ser ainda mais aberta…
Nilson Xavier, colunista do UOL, talvez tenha sido quem mais se aproximou de escancará-la de fora a fora. No texto “Rejeição de Babilônia vai além do casal de lésbicas”, ao comentar sobre Regina, protagonista vivida por Camila Pitanga, disse: “Ela faz o tipo ‘pobre batalhadora’. Mas é barraqueira, sofredora e sem classe. O público também não perdoa um tipo assim, mesmo que Regina tenha uma moral ilibada”. Xavier chegara muito próximo do x da questão; contudo, minguou na hora de delimitá-la de uma vez por todas: não é a mocinha “pobre batalhadora” que o público desaprova; quem ele sentencia sem clemência é a “barraqueira sem classe”. O incômodo da subserviência – para aproveitar o termo usado por Fernanda Montenegro – vai muito além do tema racial; afeta a questão do gênero.
Isso se evidencia quando se retorna a outra personagem de Camila Pitanga: em Cama de gato (2009), ela interpretou figura semelhante à sua Regina de Babilônia – mãe sozinha que batalha para criar os filhos. Havia, entretanto, uma diferença crassa: Rose, a personagem da trama das 6, era doce, meiga, delicada, ou seja, típico estereótipo de feminilidade incrustrado por um discurso de dominância masculina. Além de tudo, era faxineira, não dona de barraca de praia, o que, de certa forma, já a realoca para o contexto de micro-empresária. A Regina de Babilônia fazia a própria sorte; já Rose, de Cama de gato, só viu sua vida alavancar quando se envolveu na intriga entre dois milionários. Ou seja, na cartilha “Protagonismo com Camila Pitanga”, aprovada pelo telespectador, mocinha boa é mocinha reativa, aquela que não se impõe, apenas responde às agruras do mundo, claro, sem jamais perder os modos ou a mansidão da voz. Eis a contradição: no recente binômio das 9, o reflexo prevalece sobre o retrato, mas não há lugar para uma Viúva Porcina, muito menos para Madame Bovary.
Walcyr Carrasco captou a mensagem com sua Cinderela trágica, que diante de um mundo tão vil, suicidou-se no último capítulo de Verdades secretas. Ali, por trás das temáticas fortes, havia a direção estilizada, o texto pouco natural e, sobretudo, a personagem de Drica Moraes, cuja ingenuidade nos realocava da realidade para a fábula. Tony Goes, da Folha de São Paulo, foi certeiro ao pontuar essa distância ao retomar Daniel Filho – “o folhetim é […] a grande fofoca” – e pontuar que a trama das onze “fez do espectador uma tia moralista e fofoqueira”. A fofoca demanda o voyeurismo; é o olhar clandestino sobre o outro – o parente, o vizinho –, nunca sobre nós mesmos, posição que o autor, apesar dos diálogos problemáticos, conseguiu trabalhar muito bem. As tintas de Babilônia e A regra do jogo são outras, e, apesar de diferirem também entre si, contam com molduras que enquadram as mesmas coisas. A mudança da posição do olhar – não mais pela fechadura, mas pelo vidro que reflete –, atenua os impulsos da fofoca e do julgamento. O voyeurismo, esse prazer que nos coloca diariamente diante das telas, se esvai pouco a pouco nessas novelas-espelhos, que nada tem de objetos de antiquário; são espelhos-detalhes, espelhos da sala de dentista, que refletem aquilo que, no Brasil de hoje, não queremos (ou suportamos) ver: as feridas abertas. Não é preciso ir ao filme de Muylaert ou à polêmica com Assis para encontrar uma captação social; ela extravasa acidentalmente deste produto que, há seis décadas, toca de alguma forma todas as camadas sociais do país. Com sua trajetória alterada para tentar satisfazer a audiência, Babilônia perdeu dramaturgicamente e ficou aquém do que poderia; não fez a ferida jorrar sangue. Pudera: na esguichadinha que deu, trouxe à tona intolerâncias de raça, gênero e sexualidade. Bem dizia a música de Vinícius de Moraes, interpretada por Mart’nália na abertura da novela: “a questão é só de dor”.