Por Felipe Cruz
A word is dead
When it’s said
Some say.
I say it just
Begins to live
That day
(Emily Dickinson)
Quando um roteiro recebe elogios, normalmente o que se enaltece é o enredo: instigante, surpreendente, de temas controversos. Raramente, ao que parece, faz-se referência à palavra, enquanto matéria, ritmo, metáfora – o que faz de Gilmore Girls um caso à parte. Na criação de Amy Sherman-Palladino, as palavras (sua disposição, sua inflexão, sua abundância) são a estrutura óssea que sustenta os demais elementos e em torno da qual toda a obra orbita.
Trata-se de uma série que sempre preferiu a narrativa previsível – Lorelai e Luke devem ficar juntos, Rory deve entrar em Harvard, Emily e Lorelai devem brigar no jantar semanal que ocorre em quase todos os episódios – como modo de concentrar sua potência criativa naquilo que sua autora possui de inventivo: as palavras estruturadas e proferidas de modo tão característico pelos personagens.
Não é uma coincidência, portanto, que parte do apelo responsável pelo retorno de Gilmore Girls resida justamente no seu elemento central: era necessário conhecer o último diálogo concebido por Amy Sherman-Palladino que encerraria a série caso ela não houvesse sido demitida em 2006, sem poder encerrar a história em seus próprios termos e com sua própria voz. Não deixa de ser também inusitado que uma série não muito reconhecida pela crítica como “produto artístico” (da linhagem de, digamos, Mad Men e Família Soprano), tenha sido resgatada justamente para que pudéssemos reencontrar, para além de Lorelai, Rory e Emily, uma dicção autoral – aquela, que tanto havia feito falta na até então última temporada do programa.
Daí que nenhum começo seja mais apropriado do que aquele escolhido para o primeiro episódio: não é através de imagens das temporadas originais que somos reconduzidos à Stars Hollow, mas sim por meio de diálogos que se sobrepõem em uma tela preta e por si só evocam todo o exuberante universo sherman-palladiniano mais uma vez, para que possamos iniciar uma jornada, principalmente, verbal – por isso é tão comovente a primeira cena de Um ano para recordar, porque Amy Sherman-Palladino opta por registrar, antes de mais nada, Lauren Graham e Alexis Bledel retornando para esse país verborrágico, de olhares tão significativos, enquanto expressam de modo surpreendentemente opaco a saudade que sentiram de habitar aquele espaço imaginário que ganhou uma última chance de ser cartografado; e nos olhos marejados de Graham anunciando a chegada da neve, compreendemos de imediato a sensação que aquece nossos corações: estamos de volta ao lar.
Um lar que sempre foi ponto de partida e chegada das personagens, constantemente oscilando entre o estranhamento e o reconhecimento do papel que suas origens desempenham no desenrolar de suas narrativas. E o conflito principal deste revival é comum às três gerações de mulheres Gilmore: a descoberta, por si mesmas, de um senso histórico da própria vida. Para Rory e Emily este processo se dá pela necessidade de encontrar em si as palavras que melhor representam suas angústias e dilemas. Rory, que sempre dominou a linguagem verbal em um nível acadêmico, inicia Um ano para recordar usando suas habilidades para escrever a biografia de uma outra pessoa e, passando por uma profunda crise de identidade, termina por começar a escrever um livro sobre ela mesma. Personagem de conflitos menos violentos nas temporadas anteriores, a série a leva agora a um nível de autoquestionamento e impasse pessoal que muito se relaciona àquele vivido por Emily, o que torna ainda mais significativa a gravidez anunciada ao final do último episódio: em Gilmore Girls a maternidade sempre foi retratada não como uma forma de anular-se enquanto indivíduo, mas sim como um processo de autoconhecimento e emancipação, que trouxe à Lorelai muito da sua segurança e independência, e à Emily a maior parte de suas angústias e transformações.
É, pois, a crise vivida pela matriarca a representação mais evidente do jogo narrativo proposto por Amy Sherman-Palladino: agora viúva, ela reavalia o valor de tudo a que se dedicou durante seu casamento e chega a uma conclusão libertadora – é preciso resgatar quem ela era antes de ser uma mulher casada e redimensionar aquilo que já estava estabelecido como parte essencial de sua persona, o que a metáfora com os quadros dedicados a Richard expõe de modo sutil e contundente (primeiro um quadro que toma conta de toda a parede da casa, depois um menor, ainda que imponente, a ser colocado na parede de um novo lar, idealizado e construído pela própria Emily). Como é redentor tornar Emily uma narradora ao final da história, uma mulher que, assim como Rory, terá a oportunidade de expressar-se tendo a si mesma como referencial, ao invés das regras sociais segundo as quais viveu até ali.
Lorelai, no entanto, passa pela transformação mais delicada. Protagonista sempre tão expressiva e autossuficiente, implacável em muitos momentos, sua jornada é o aprendizado de conseguir ouvir o outro. Desde o impressionante confronto com Emily no primeiro episódio até o conflito com Rory ao saber do livro que ela pretende escrever, Lorelai precisa aprender que o seu modo de contar a história da família Gilmore não é o único, nem o melhor. Sempre muito articulada e expansiva, ela é colocada em espaços fechados (o consultório de terapia, o quarto de hotel, o estúdio de miss Patty) onde precisa lidar com o silêncio em que reverbera sua escolha mais radical: a de contar sua história sem levar em consideração os momentos que contradizem a imagem que criou para si de filha sufocada por pais controladores e frios e mãe “melhor amiga” da filha. O zoom-in gradativo e sereno que nos aproxima de Lolerai quando ela, enfim, consegue ligar para a mãe para reinventar a memória do pai falecido é justamente a culminância dessa desconstrução: temos ali o instante em que a protagonista abre espaço em sua narrativa para elementos dissonantes, que aprofundam a ambivalência sobre a qual ela se construiu, a de uma mulher que fugiu de seu passado, mas sempre aproveitava as oportunidades que tinha para revivê-lo enquanto mágoa. Lorelai admite que sua história não foi escrita apenas por ela mesma e torna-se, assim, ainda mais livre.
Muito já se disse que não é possível voltar para casa. Em Gilmore Girls nos é ensinado que a impossibilidade desse retorno está nas constantes transformações pelas quais um lar passa; e a casa, neste mundo, é feita de palavras, que evocam o passado, sustentam o presente e anunciam o futuro. Full freaking circle.
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P.S.: É muito significativo para mim fazer esta última contribuição à Pós-créditos falando sobre a mesma obra com a qual “estreei” na revista. O ano de 2016 foi uma espécie de terremoto e, justamente por isso, retornar à Stars Hollow foi tão emocionante e necessário. Gilmore Girls – Um ano para recordar me trouxe à memória os episódios que a Keyze gravava da Sky para eu assistir em casa depois da escola, ou as tardes passadas com a Glenda conversando sobre como essa série havia nos feito companhia por tanto tempo, também me lembrou o e-mail emocionado da Ingrid agradecendo por ter nascido e, assim, ter podido assistir ao final da 4ª temporada, além de um certo dia de 2013, no Rio de Janeiro, em que eu e Mariana matamos a saudade um do outro assistindo Lorelai e Rory conversarem. Hoje, penso que a arte que me interessa é essa, que se confunde com a minha própria vida. Obrigado ao Álvaro e à Jualiana por terem me dado a chance de escrever neste espaço sobre a minha relação com obras que tanto me influenciaram. Obrigado à Pós-créditos e um feliz natal a todos!