Ted Lasso: não olhe para cima, olhe para frente

por Álvaro André Zeini Cruz

No momento em que esta crítica é escrita, só se fala em Não olhe para cima, sátira de Adam McKay sobre os cinismos e negacionismos que nos cercam e nos governam. Entre méritos e defeitos, McKay parodia sobre uma constatação contemporânea e sugere que a solução é o meteoro. Uma vacina – com efeitos a longo prazo – para este estado das coisas talvez esteja no streaming concorrente, a AppleTV, sob o título que é também nome do personagem: Ted Lasso.

Ted Lasso (Jason Sudeikis) é um visionário pouco óbvio e também o típico protagonista que cai numa cilada: ex-treinador de futebol americano, ele viralizou nas redes por causa da empolgação de sua dancinha durante a comemoração de um título. É esse flagrante entusiasmo (e não o sucesso esportivo) que o faz desembarcar na Inglaterra para treinar um time de futebol (não americano) prestes ao rebaixamento. Rebecca (Hannah Waddingham), a dona do clube, deseja e planeja essa queda para punir o ex-marido canalha, já que o time era a única coisa que o ex amava. Ela acredita que Ted é a engrenagem que efetivará esse desmonte; além do jeitão pateta, é sabido e assumido (pelo próprio, inclusive) que ele não entende nada de futebol. Mas essa cama-de-gato acaba emaranhando Rebecca, pois embora não entenda de bola, Ted entende de gente. E isso basta.

A evidente ignorância sobre o esporte não passa por qualquer tentativa de disfarce; numa de suas primeiras aparições, enquanto Ted lê Vagabundos iluminados, de Jack Kerouac, Beard, o técnico-assistente, lê Soccer for dummies e afins. Isto é, o jogo, essa operação cheia de regulamentações, está a cargo do assistente; o técnico principal prioriza literaturas que são ou almejam a arte, e que, por isso, alimentam seu interesse pelos seres que protagonizam os jogos para além dos gramados, mas nas casas, nas ruas, nos passes dos cotidianos e das convivências. Isso se explicita numa declaração do próprio Ted, no 8° episódio: quando é ridicularizado pelo ex de Rebecca, Ted revela a consciência de que é um homem subestimado por outros (o que o livra da ingenuidade), mas cita Walt Whitman – “seja curioso, não crítico”.

Descortina-se, de uma vez por todas, o tema de Ted Lasso: numa contemporaneidade de crises – sejam elas reais, imaginárias ou fabricadas –, a curiosidade, que é o que deveria disparar as crises, é reduzida às especificidades que nos dizem respeito, e, por isso, um traço de caráter paradoxalmente em extinção. Assim, num contexto de crises que se retroalimentam a partir das superfícies – e que se desfazem rapidamente diante da algo mais profundo, como o diálogo –, Ted é um curioso; mais do que ninguém, quer saber, conhecer: não a humanidade como um todo (porque não é um sujeito dado a utopias), tampouco as transações que essa humanidade inventa, uma vez que isso é consequência (e também porque não é dado a pragmatismos). A curiosidade de Ted é pelos seres humanos imediatos, aqueles que o cercam naquele momento, aqueles com quem pode falar e, principalmente, aqueles a quem pode observar e ouvir. Sua técnica é usar desses recursos para ajudar as pessoas “a serem suas melhores versões, em campo ou não”. É essa tática, impregnada de uma visão de mundo, que vai desarmando as crises caricaturadas que tentam desacreditá-lo, os obstáculos que tentam dissuadi-lo da beleza da horizontalidade que há num empate. Desta forma, Ted adoça o jornalista ácido (por conta do respeito com que come um jantar indiano apimentado), presenteia seus jogadores com uma curadoria de livros pensada individualmente, cativa os moradores da cidade (que continuam chamando-o de punheteiro, mas com outro tom), perdoa Rebecca, uma vez que reconhece na arapuca dela uma dor genuína (e partilhada), mas, mais do que isso, uma oportunidade de mudança, para ele e para outros. Em tempos em que o negacionismo é negociado a partir da conveniência de certas crenças particulares e uma descrença no que é comunitário, Ted Lasso “acredita em acreditar”, trazendo essa crença para o âmbito mais imediato, simples e sincero. Se o filme de McKay é de uma acidez sintomática do contexto social contemporâneo, a série de Sudeikis cativa justamente pelo otimismo estranho aos tempos ao defender, com doçura, que, para crer na humanidade, basta olhar curiosamente um só ser humano. Ted Laslo diria: não olhe para cima, olhe para frente.