Stranger Things: The neverending story is not here, it’s near

por Álvaro André Zeini Cruz

Lá se vão quase 10 anos desde aquele Natal (na diegese, já que a série foi lançada em julho) em que Joyce (Wynona Rider) recorreu às luzes pisca-pisca para se comunicar com Will (Noah Schnapp), o filho raptado e mantido por monstros no upside down. Era o início de uma aventura assumidamente inspirada nas histórias de Steven Spielberg e Stephen King, mas que, nesse coming of age, acrescentou traços de Carpenter, Cameron, Craven, Lucas, Scott e outros cineastas com autoria delineada entre a Nova Hollywood e o high concept cinema. Intensificava-se também um período ainda vigente de comercialização da nostalgia, ainda que a série criada pelos irmãos Duffer elabore uma nostalgia pelos anos 1980 a partir de fagocitoses complexas, às vezes mais diretas e referenciais (caso de ET), outras, mais discretas e orgânicas à narrativa (a explicação de Robin [Maya Hawke] comparando personagens a discos da época, no 5º episódio desta última temporada). No diálogo proposto pelo principal título de um streaming — não muito afeito às salas de cinema — e o próprio cinema, uma coisa é certa: Stranger Things ocupa uma lacuna deixada pelo cinema de blockbusters americanos, já que no período em que a série esteve no ar, pode-se contar nos dedos as produções que conseguiram usar a linha da emoção para fazer tal costura entre narrativa e espetáculo.

É em meio a esse cinema de CGI que não sangra — ocupado em criar plasticidade que orne com fantasias de super-heróis —, que Stranger Things recupera uma estética da carne, vista em Carpenter e Craven, mas também em Cronenberg e Verhoeven. Sobre a leva de episódios lançados ontem, em pleno Natal, houve muita reclamação acerca de supostas enrolações, mas o andamento narrativo nunca foi um trunfo da série (e, sim, o universo e os personagens). Em compensação, em apenas três episódios, há cenas com emoções profundas, alicerçadas no vínculo entre personagens (e nós, que os acompanhamos por uma década) proporcionado pela serialidade. Mas, principalmente, são cenas que têm um tempo justo, assumindo que o evento cênico está nesse vomitar e digerir (não necessariamente nessa ordem) vococêntrico, compreendendo que expôr também é agir, e que, muitas vezes, a ação (no senso mais comum) pode esperar. Nesse sentido, o pedido de não casamento de Jonathan a Nancy é derramado como a cera que vai tomando o cômodo, subindo sobre tampo da mesa, numa cena que remonta a controvérsia de Titanic entre as paredes que sangram de Horror em Amityville. A climática cena em que Will assume sua sexualidade, tem a modulação do próprio diálogo entre a rapidez da explanação nervosa e o gran finale engasgado, entrecortado pelas respirações, mas também por todos os contracampos precisos (no sentido de serem necessários e bem-postos) — Joyce, a mãe; Michael, o amigo; Robin, a mentora. Minha preferida é mais breve, mas também esculpe seu tempo (Tarkovski que me perdoe, caso tenha se revirado no túmulo por aplicar seu título-tese a Stranger Things): “You die, I die”, juram-se os amigos Steve (Joe Keery) e Dustin (Gaten Matarazzo), entre closes que respeitam os silêncios dos olhares (o abraço é mera consequência do que está dito nesse não dito), num contraponto (com Jonathan e Nancy) que ressalta que o perigo iminente da morte não precisa, necessariamente, ser encarado pelo amor romântico.

Esse tipo de cena-DR (você vai querer discutir nossa relação agora?, Nancy pergunta a Jonathan, em plena ação no mundo invertido) é a própria carne de Stranger Things. Claro que elenco extenso obriga a série a usar o artifício de compor e recompor grupos de personagens em diferentes situações, não só para haver equilíbrio no desenvolvimento individual, mas para que eles se revelem entre atritos, isto é, a partir de diferentes convivências. Essa dinâmica gera problemas rítmicos num sentido macro narrativo, mas oxigena e dilata as cenas como engrenagens pulsantes, entendendo não só a reconstrução ficcional de um outro tempo histórico (pré-popularização digital), mas também o tempo das histórias desses personagens, que cruzam o “buraco de minhoca” entre a infância e a vida adulta.

É nesse sentido que desvio dos episódios recentes e retorno sentido oposto, mais especificamente ao final da (famigerada) terceira temporada. Pois se, para muitos, a leva de episódios de 2019 pareceu apenas transmutar o monstro da segunda temporada em carne (puro suco de Carpenter) e transportá-lo para dentro de um shopping center, é também ali que está uma das sequências que melhor elaboram o tempo em prol da emoção. A ação é desencadeada por um deadline: Hopper (David Harbour) e Joyce precisam de uma equação (a constante de Planck) para acessar o dispositivo que encerra o portal aberto pelos soviéticos. Do alto de uma colina, Dustin sabe quem pode ajudá-los: Suzie (Gabriella Pizzolo), a namorada nerd que, até então, só havia sido mencionada pelo garoto. Anos antes dos celulares, Dustin contacta Suzie via rádio, mas uma pequena crise conjugal se instala quando ela reclama do sumiço dele (que, ela não sabe, estava ocupado enfrentando demogórgons). Suzie-poo, então, impõe uma prova de amor para que se derrote o horror antes do deadline: Dusty-bun precisa interpretar a canção-título de A História sem fim.

Dustin tenta negociar, mas Suzie é irredutível. Então, sob um céu noturno com nuvens contornadas pelo luar, ao lado de Érica (Priah Ferguson), ele solta um “shit” e inicia a tarefa da guardiã do limiar; com o esganiçado da puberdade, canta: “Turn around. Look at what you see…”. Ao longo dos primeiros versos, à capela, a câmera faz um travelling-in sentido ao rosto de Matarazzo, um dos mais singurales de Stranger Things. O corte inicia a sequência de montagem, que intercala todos os personagens — crianças, adolescentes e adultos — reagindo àquela provação inesperada. O primeiro é, justamente, Steve, o melhor amigo que, a bordo do porta-malas de um carro com Robin, vira o rosto meio incrédulo não mais com o monstro gigante colado ao vidro traseiro, mas com essa aparição da infância em sua forma mais genuína, em meio ao perigo de morte. Ao contrário dele, Robin sorri diante desse inesperado ordinário, contraste bem-vindo ao fantástico recorrente. A música surge definitivamente, com o instrumental encobrindo os demais sons diegéticos, incluindo as pegadas monstruosas. Aos adultos, só resta esperar; na dependência da curiosidade infantil (que faz com que as crianças saibam o que eles não sabem), precisam respeitar esse tempo da infância, que é outro, é skholé. Em determinando momento, a distância geográfica é superada pela tela dividida entre Dustin e Suzie. Ela encarna um paradoxo: olhando levemente para o alto e com uma das mãos estendidas para cima, reproduz uma encenação ufanista em tempo de Guerra Fria; a música, no entanto, canta sobre outra história, outro mundo, em consonância com o background que, preenchido por estrelas e planetas adesivados, compõe um céu artificial. Talvez por isso, quando os versos finais chegam, o olhar alto e esperançoso de Suzie murcha em pleno plano. Um desencanto se avizinha nesta última cena de plena infância de Stranger Things.

Na temporada seguinte, lançada três anos depois e com uma pandemia no meio, a infância é apenas um lampejo, e a vida adulta assombra a adolescência da forma mais comum e recorrente: os caminhos se bifurcam e as distâncias parecem incontornáveis. Não serão porque a série está no campo do extraordinário, onde o lugar da infância garante um magnetismo que funciona mais na ficção do que na vida real. Ainda assim, voltam outros, crescidos, com o tempo da infância devidamente embalado, restando, agora, lidar com os traumas e aprendizados. Não à toa, Vecna coopta outras crianças, porque as originais estão, de alguma forma, mortas; criam não mais pela liberdade, mas pela necessidade. Foi ao som de Neverending Story que Stranger Things pôs um ponto final na aventura infantil, essa história que se deseja que não tenha fim, transmutando a série do fantástico ao horror. No não casamento de Nancy e Jonathan e, sobretudo, na promessa entre Dustin e Steve, todos adultos, o mais ordinário dos caminhos desponta: a morte. Stranger Things se encaminha ao desfecho mostrando que extraordinário é poder chegar ao fim ao lado daqueles com quem crescemos. Há muito de King e Spielberg nesses tempos em que “nada acontece”, mas que fazem a carne da série.

Neverending Story é, de longe, a cena que mais me emociona em Stranger Things.