por Álvaro André Zeini Cruz

Se em Vertigo e Dublê de corpo a visão é o sentido que leva à obsessão e à fobia, em Sound of noise, a fobia vem dos sons ritmados, melódicos, harmoniosos; ou seja, se dá “diante” música. Diante ou em meio? Por ora, basta dizer que há o embate, sem que se estabeleça posições. Fato é que, herdeiro de uma família de musicistas, Amadeus (Bengt Nilsson) foi o único a nascer sem o dom de operar instrumentos e sons em prol de uma combinação melodiosa, e seu nome-homenagem coroa essa peça do destino. Mais do que isso, para ele, a música é insuportável, a ponto de impedi-lo até de acompanhar o trabalho do irmão, um regente bem-sucedido. Portanto, a profissão de investigador vem a calhar, pois, aparentemente, ocupa a ponta oposta de uma arte cuja natureza dispensa a obrigatoriedade do registro, contentando-se com a efemeridade. Ser policial, a princípio, o obriga a lidar com um mundo de fatos concretos. Mas o caso de polícia da vez envolve música e músicos que tocam composições em instrumentos e performaces inusitadas.
A arte irrompe desse jogo de polícia e ladrão: não a arte conciliadora, que permite ser absorvida e domesticada para ser admitida em espaços institucionais, mas uma arte radical, que se apropria do banal para dilacerá-lo em ruídos que não deixam marcas permanentes, só o retumbar dos tímpanos e o espanto de quem os ouve. Mas se em Hitchcock a obsessão e a fobia se unem rumo à perdição, aqui a investigação leva à uma possibilidade de cura (ou, ao menos, de controle dos sintomas). Nesse sentido, é um filme mais de palmiano do que hitchcockiano, como bem ilustra a cena da luta na escadaria: a questão não é mais a vertigem, mas o cerco claustrofóbico que tem como vítima a escultura atropelada por uma retroescavadeira.
A obsessão reaparece; não mais como fetiche, mas como processo. Isso possibilita não só que a investigação avance, mas que o detetive ultrapasse os artistas-foras-da-lei. Entretanto, Amadeus não tem o dom, por isso, não cabe a ele ser um maneirista, mas uma espécie de patrocinador-provocador, que instiga esperando em troca um paliativo ao trauma. Ele propõe uma última sinfonia, ao mesmo tempo sonora e visual, uma vez que é executada a partir dos cabos elétricos de uma estação, o que provoca blecautes ritmados em toda a cidade. É durante essa apresentação carregada de descargas (e, por isso, catártica) que o travelling circular hitchcockiano/de palmiano reaparece para cercar – tal qual o som e as luzes – Amadeus e Sanna (Sanna Persson Halapi), a artista líder do grupo. Os corpos, no entanto, não se unem num beijo; tampouco se olham: pelo contrário, se opõem para assistirem o que está ao redor e o fazem no amplo sentido apresentado por Christian Metz: assistem como aqueles que olham e ajudam a nascer, a viver.
O olhar definitivo entre eles ocorre adiante num falso raccord, quando ambos estão em espaços diferentes; independe, portanto, da presença física conjunta, mas se dá pela montagem e, principalmente, pela ponte sonora. Sanna canta e sua voz sobrepõe a imagem de Amadeus sentado na plateia de um concerto, a fobia finalmente controlada. Então, a beleza emerge não mais como a imagem de um corpo a ser replicada (e que por isso se torna doença e perdição), mas como uma energia que flui, passa e cura. O barulho da arte como cura; o som de Sanna que, não à toa, canta “Eletric love”.