por Álvaro André Zeini Cruz

Se Sirk é tido como sinônimo de melodrama, nem só de melodrama vive Sirk. Sinfonia Prateada é a prova de que algumas peças remanescentes do gênero anterior podem ser remontadas pela comédia de costumes. A trama parte de um happy end não consumado: na juventude, Samuel Futton (Charles Coburn) foi a ponta rejeitada de um triângulo amoroso. Agora idoso e sem herdeiros para deixar sua fortuna, ele se infiltra na família da mulher que o rejeitou, adotando-a como se fosse sua e causando altas confusões disfarçado de pensionista pobre.
Primeiro, Sirk apresenta o funcionamento familiar de uma classe média que conta centavos para que o pai se dê ao luxo dos charutos, também contados. De certa forma, é como se recuperasse — transpondo a um outro contexto — a família de Agora Seremos Felizes, centralizando este filme na figura do avô, lateral no de Minnelli. As dinâmicas iniciais são as mesmas: esse avô postiço logo se apega à neta criança (e Roberta lembra muito Tootie), enquanto a neta mais velha vive um romance atravancado pelas circunstâncias. Quando a família recebe o cheque de Futton — sem saber muito bem os motivos que trouxe a eles esse dinheiro —, a vida muda num passe de mágica; as ações, também. Sirk exercita sua veia cômica: a mãe, sempre ressentida com aquela vida de jantares ensopados, desmaia no colo do bom velhinho, que se mantém incógnito como benfeitor. Mal a Sra. Harriet recupera os sentidos e a ordem anterior já começa a se desfazer: o noivado entre a filha Millicent (Piper Laurie) e o trabalhador Dan (Rock Hudson) é descompromissado pela própria mãe em meio à balbúrdia em torno do cheque; a casa será vendida e até o cachorro esfarrapado será trocado por um modelo novo de poodle francês. Do choro emocionado, a mãe passa aos pulinhos excitados, com direito a um “Uipe!” que desconcerta a família, pois sai como ato-falho celebrativo do fim daquele patriarcado pequeno.
Essa é a grande diferença entre os filmes de Sirk e Minelli: naquela casa em St. Louis, em pleno começo do século XX, as mulheres conjugam uma força invisível, que vai se infiltrando entre a mesa e o piano, a janela e o quintal, até comover o pai, dissuadindo-o da mudança de vida autoritária. Em Sinfonia Prateada, o Sr. Charles deixa os dias a postos atrás de um balcão para ser posto, pela esposa, no lugar de rainha da Inglaterra, na mansão que não constitui um lar. Com os pais desaparecidos entre futilidades, os filhos se metem em pequenas confusões ilícitas (insinuando-se um lampejo futuro de Palavras ao Vento), mas são sempre salvos pelo vovô postiço. A estrutura episódica faz com que essas peripécias culminem repetidamente diante de um juiz; a situação, que aparenta ser uma piada aleatória, é crucial para o mal-entendido no clímax.
Disposto, inclusive, às gags — a melhor é aquela em que um beijo é interrompido pela batida na traseira do carro quebrado, que acaba pegando no tranco —, Sirk encontra no ator Charles Coburn a personificação desse Scrooge arrependido antes da visita dos fantasmas. Decidido a não amargar uma velhice solitária, Samuel Futton se desfaz do nome sofisticado para, ao se tornar um comum John Smith, abraçar os frutos da rejeição que o levou a uma vida só. Coburn encarna com energia esse velhinho que, disfarçado sob o uniforme de atendente, veste um pomposo sobretudo de pele e sai de bicicleta para ajudar os seus, que não são exatamente seus. Na cena final, de volta ao lar, a família olha o Sr. Smith se afastar debaixo da neve quando outra confusão se anuncia. Não se resolverá efetivamente nos limites da narrativa, mas simbolicamente, na derradeira frase do protagonista. Quando o repórter pergunta se o Sr. Smith vive ali, o próprio Smith — não reconhecido — responde: “Você vai encontrá-lo lá dentro. Se não em corpo, ao menos em espírito”. Sem os bonecos de neve de Minelli, Sirk encerra insinuando que, mais do que carne e sangue sob um teto, a família é esse conjunto maleável de pessoas que reverberam seus espíritos umas das outras.