por Álvaro André Zeini Cruz

Em A Arte do cinema: uma introdução, David Bordwell e Kristin Thompsom explicam o raccord gráfico como “dois planos sucessivos unidos de modo a criar uma forte semelhança de elementos de composição”. Exemplificam com uma cena de Bom dia, de Yasujiro Ozu, em que a montagem justapõe o plano de um suéter vermelho pendurado no varal ao plano de um abajur cuja cúpula é também vermelha; no caso, a ligação gráfica se estabelece pela cor dos objetos, posicionados na mesma porção das imagens.
Sem Sol, de Chris Marker, é marcado por essa técnica de montagem; há, por exemplo, um momento em que das mãos entrecruzadas no metrô vai-se às mãos que percorrem os corpos durante o sexo. Mas há um momento específico que dá outra volta no parafuso do raccord gráfico. A sequência é conhecida: a narração – baseada nas cartas de um cineasta fictício – filosofa sobre o game Pac-man, encontrando ali uma representação do jogo de forças entre indivíduo e meio, e, por isso mesmo, uma metáfora gráfica da condição humana. Enquanto a voz filosofa, o Pac-Man faz o que faz de melhor: percorre seu labirinto papando pontinhos e contornando os fantasmas em seu encalço. Esses planos detalhes passam sucessivamente, até que a narração antecipa a imagem derradeira: encurralado pelo algoz, o Pac-Man é abatido. Morre. Não uma morte qualquer, mas uma violenta, que rasga e escancara progressivamente a boca desse personagem-forma, fazendo com que, no processo, ele pareça uma tulipa em pleno murchar. O Pac-Man se transforma numa flor que se extingue, assombrada pela trilha de game-over. No instante em que some, um raccord gráfico promove a troca dessa inusitada “flor” em 8-bits pelas pétalas dos crisântemos brancos, distribuídos a uma multidão enlutada.
No miolo do filme, a morte se instaura como temática desse segmento de Sem Sol, e a voz over a metaforiza como uma parede cuja espessura difere entre o Ocidente e o Oriente. Fala também da surpresa de quem morre e da curiosidade das crianças que, ao velarem um panda, tentam espionar por essa parede, buscando entender o incompreensível fatídico que assola homens, animais e Pac-men. Então, uma girafa é atingida por um projétil intruso, que atravessa primeiro as imagens; depois, a carne, o pescoço longilíneo. Um segundo tiro faz com que o sangue jorre, e, apesar do líquido emergir em escala menor do que o corpo, o vermelho supera o amarelo desbotado da imagem do animal (assim como a boca do Pac-Man gradativamente consumiu e derrotou o contorno e o preenchimento do círculo-personagem). Adiante, a voz usa Vertigo, de Alfred Hitchcock, para tratar do tempo como aparições espirais, manifestadas tanto no corpo “original” (o coque de Madeleine) quanto nos decalques (o retrato, a foto do olho, os círculos nos troncos, todos no mesmo filme). Nesse divagar entre espaços (Japão, África, filmes e fliperamas) e tempos, se há algo paradoxalmente “palpável” em Sem Sol é que, para Marker, o ensaio vertiginoso se dá porque o tempo assim o é. Ele é a espiral que interliga a vida e as imagens, é a matéria fluída que preenche o grande fosso, esse alicerce comum e incontornável chamado morte. Quando esse redemoinho finda, encerram-se as possíveis viagens de forma em forma, de cor em cor, de flor em flor. Antes, porém, um último movimento circular, agora plano, consome o corpo até transformá-lo em buraco, em vazio, num Pac-Man cuja boca se abre até engolir a si próprio. Surge o urubu para fincar o bico no olho morto da girafa, certificando-se de que o ciclone de luzes, formas, cores e raccords está extinto e de que nada mais há além do buraco. Definitivamente, sem amarelos, sem crisântemos, sem sol.