Restinga de Canudos

por Álvaro André Zeini Cruz

Enquanto o cuscuz desce para ser servido aos “peixes” na plateia, uma carteira escolar é posta no meio do palco. Logo, os integrantes da Cia do Tijolo informam que aquela carteira carcomida é relíquia de uma visita ao local que ali emergirá, tirado da água numa cenografia parcimoniosa — mas jamais seca —, transmutado e revivido em corpos, cantos e varapaus. Canudos. A cidade abafada entre expedições e, ludicamente, realagada pela água no prato duralex retroprojetado se refaz entre cenas e questões numa restinga, cuja etimologia deriva de corda, cordão, coisa com nó. É a partir dos nós que a Cia do Tijolo faz de Restinga de Canudos um enigma que vai desatando — e reembolando — um Brasil.

Restinga de Canudos. Ou Cordão dos Canudos-de-pito. Ou Areia e Bambu. Ponto e linha. Nós. Nessa peça feita de gente e de varas, os corpos cantantes ocupam o palco, manuseando os paus-a-pique que, ora são cenografia simbólica, ora são props, objetos vivos sob manuseios idem. Nas mãos de vários personagens, os bambus tornam-se armas e grades, mas também vaga-lumes e cetros, como o de Antônio Conselheiro. Nas mãos de uma dupla de professoras, torna-se uma linha do tempo, ferramenta pedagógica dessa peça-aula, que sintetiza os subaltenizados no corpo e na voz daquelas que trabalham para proporcionar consciência e autonomia. Desse bambu, num raro momento horizontal, caem as datas, desdobra-se a História. A História de Canudos e da “Res publica”, que nunca foi “coisa pública” de fato, assim como a independência nunca apagou o hábito colonial, assim como a abolição até hoje não se completou.

Por que Canudos? Porque dessa mesma Bahia, que segue tendo uma das polícias que mais mata, “descobre-se” o Brasil; este Brasil com artigo determinado, iludido por forças hegemônicas a entender-se como único e uníssono, regido sob o positivismo de Augusto Comte, reposicionado pelos militares sem amor, só “ordem e progresso” em prol de uma tal identidade nacional. Esse Brasil obcecado por uma modernidade incompleta, contentada com chaminés altas e automóveis resplandecentes. No palco, no entanto, a verticalidade é dos paus de beira-rio, enquanto os corpos brilham não pela lisura da lata, mas pelos poros das peles, iluminados pelos mais diversos matizes (para que não haja só sertão amarelo), desordenado pelas vozes suculentas, alternadas em repentes que alagam e aveludam os staccatos, transmutando-os em melódicos. Nessa cheia dos sons, os corpos, sim, são poeira em rebuliço, redemoinhos pulsantes, não fabris, que entram e saem do palco até a deflagração do clímax hipotético, este, sim, ordenado pela mise en scène do duelo. Os caubóis deste Nordesten chamam-se Antônio Conselheiro e Euclides da Cunha.

Aliados que não se conheceram em vida? Cabeças decepadas, estudadas e comparadas sob os termos da eugenia de outrora? (outrora?). É nesse exercício da ficção, da imaginação supositiva, que Restinga de Canudos dá a outra volta no parafuso. Na confrontação entre o imortal das Letras e o líder popular (cuja morte foi imortalizada numa fotografia), emerge o agora de uma elite cultural que, iludida por uma modernidade homogênea, vê o outro como objeto a ser examinado, domesticado, retratado e sugado, seja esse outro árido ou alagado. Um Brasil que entre o nós vs. eles, guarda esse meio-termo de sujeitos supostamente bem-intencionados, cujas denúncias são sempre sobre a causa da morte e não sobre os sintomas a serem combatidos. Um Brasil de uma elite cultural de legistas. Quando Didi-Huberman defende a importância das fotografias do nazismo em Imagens apesar de tudo é porque aquelas eram imagens-denúncia, capazes de salvarem vidas. Na argumentação de Antônio Conselheiro, uma contradição é posta: Os Sertões é arte, mas também anúncio. A pergunta que Conselheiro faz é oportuna: foi Os Sertões que tornou Canudos célebre ou Canudos que impulsionou Os Sertões?

É nas cercanias dessa conversa e do sangue derramado (e retroprojetado) que a sombra não anistiada de um soldado surge como uma promessa de retorno, de nó reincidente, que volta a apertar em golpes e outras tenebrosas transações quando ignorado. É desse nó de Canudos que outra planta transfere e transmuta injustiças e resistências para o pé do Morro da Providência, onde antes, nos conta a peça, havia nascido Machado de Assis. Favela é o nome da árvore que segue a sina de Canudos, de batizar um tipo de comunidade marginalizada sob a violência do Estado, incompreendida em suas nuances, particularidades e pluralidades. Os bambus alagaram e, da terra na parte oca, replica-se uma escultura de Brasil de argila e nós.

Por fim, entre “o nordestino é um forte” e “o sertão vai virar mar”, o cuscuz e a talagada de cachaça, há essa Cia do Tijolo, esse coletivo que se une, resultando numa peça só. Tijolo. Matéria solidificada do barro, terra úmida, pó alagado, que mantém, ainda assim, um aspecto afinado ao elemento que Mário de Andrade considerava a síntese do sertão: a poeira. Em Restinga de Canudos, o palco se torna espaço das poeiras do hoje e da memória, de uma História que cintila como partículas sob o mesmo sol que recai sobre as cabeças e ombros, entre as vozes caladas que cantam. Poeira encantada, que contorna o objeto que volta à baila ao final da peça: a carteira escolar vazia, convidativa a todos aqueles que não temem os nós, cientes de que eles não se esgotam. Não deixa de retomar o caráter aristotélico do teatro como aprendizado pela imitação da ação dada à emoção.

Peça vista em 20/09/2025, no anfiteatro da USP Bauru, na programação do FestinBau.