Rentes

por Álvaro André Zeini Cruz

Em O Acontecimento, Annie é acompanhada, no ventre, pelo feto indesejado, e, rente ao pescoço, pela câmera sanguessuga, que faz dela corpo e espaço do quadro cinematográfico. Essa câmera concebe um olhar paradoxal, a um só tempo obsessivo no encalço e sutil na passada, perseguindo de perto, mas com uma serenidade – quiçá frieza – de quem olha obsessivamente para não perder de vista o que está por vir. Esse fluidez ultra-calculada não deixa de carregar a consciência de que este é um filme feito sobre uma mulher que abortará, e o confronto a essa meticulosidade do movimento de câmera irrompe num vestígio invasivo, que transborda do mundo recortado, do extracampo para o campo, borrando um sfumato sobre os contornos pálidos do rosto nuclear, transmutando em imagem cinematográfica uma presença que parece emprestada das pinturas de Jean Renoir.

Essa luz matinal, agradavelmente solar, impressionista, areja de maneira inquietante – e aparentemente inadequada – este filme sobre a acossada e o aborto que ela realizará, que aparece como não poderia deixar de ser: pelo tilt milimetricamente calculado na espacialidade e no tempo (para que a imagem dure mais do que um vislumbre e menos do que uma espetacularização), sob uma luminosidade de Goya e uma solidão de Hopper. Por ironia (ou não), a luz do aborto filmado por Audrey Diwan lembra a do dar à luz em Nove Meses, de Marta Mészáros, talvez porque se trate de momentos que dissolvem todo o entorno; opostos em todo o resto, alinhavados pela solidão e pela força.

A cena-acontecimento ocorre depois de um embate em que Annie diz ao professor que se dedicará aos estudos, pois não tem mais a “doença que transforma mulheres em donas-de-casa”; diálogo travado num campo e contracampo desigual: o rosto dele, predominante, emoldurado pela lousa (pela hierarquia institucional), transformando-se diante da revelação; o dela, sob a luz que sopra o limiar de uma face determinada em sua descoberta — quer escrever, dar à luz de outro jeito. A forma do filme não se altera após a dramatização do aborto: a câmera continua rente; a luz, graciosamente intrometida. A passagem pelo Acontecimento muda tudo, sem aparentemente mudar nada, porque o filme de Diwan nasce dessa contradição do que está à vista, sob o céu e sob o sol, e o que deve ser seguido, capturado, para que se ponha luz, mesmo que esta seja dura, que produza abismos visuais.

Se Annie é o mundo da câmera em O Acontecimento, a câmera arrasta o mundo em O Mundo atrás de nós. Talvez por isso, Labidi (Aurélien Gabrieli) não o veja, um erro crasso para quem se pretende um escritor. Mas, nos corredores dos dias, ele esbarra com Elisa (Louise Chevillotte), e o amor, de alguma forma, faz com que veja um mundo. Faz também com que sinta o peso de compartilhá-lo.

A câmera do diretor Louda Ben Salah também segue de perto; não à espreita de um acontecimento, mas porque a cidade-luz por onde Labidi se move é feita de guetos e quartinhos, como aquele que ele divide com o amigo Aleksei (Léon Cunha da Costa). É onde ocorre a pequena cena expansora em que Aleksei – um homem grande e gordo – chega no cubículo e encontra o casal ensaiando uma dança em close (porque não há espaço para outro enquadramento). Elisa traz o recém-chegado para a dança, mas ela está de costas, o que faz com que, durante parte do tempo, seu rosto só exista refletido nas reações de Labidi e Alekesei. Limitados, eles se chacoalham, se abraçam e se divertem, como átomos em agitação dispostos a expandirem o mundo em riso, química e cinética. Sobre a batida – que repete os versos Remember me? I’m the one who had your baby’s eyes –, Aleksei pergunta: que música é? Elisa, então, reaparece com seu rosto mutante (ora mais sardento, ora menos, a depender do naturalismo da luz) e anuncia: “é a vida”.

Mas há um mundo atrás e, nele, as vidas que se vão. Nesse (des)equilíbrio entre a visão limitada e o que se perde de vista, o pai de Labide morre a pare a escrita do filho. Para ver o pai – quase invisível em vida –, Labide escreve sobre si, sobre eles e o sobre a dor de não ver mais; ao que tudo indica, numa autoficção. Como Annie (Ernaux), que também escreve sobre o pai a partir da morte dele.

Da Paris cinzenta de Labidi ao campus primaveril de Annie, a câmera rente aos rostos (e nucas, pescoços, ombros e orelhas) é a constante que costura (ou pelo menos, alinhava) esses filmes sobre dar alguma luz às sombras e entranhas (ou a partir delas). Mas, para que se enxergue as nuances tonais, é preciso estar próximo. Rente.