por Álvaro André Zeini Cruz

Tido como basilar à realização da crítica, A Arte de Amar, de Jean Douchet, orienta que este ofício seja realizado sob o equilíbrio desafiador entre paixão e lucidez. Incontornável, o texto de Douchet tem sido, para mim (e espero que para muitos), um farol, desses que lançam luz sobre a crítica recém-escrita e, com ela, a pergunta — há equilíbrio neste texto? Entendendo a crítica como uma escrita desvencilhada dos compromissos e do tempo acadêmico, mas, atrelada a um outro equilíbrio custoso entre o tempo da cinefilia (da vida dada aos filmes) e o tempo da vida real, uma outra pergunta desponta com recorrência quando pontuo um texto — é uma crítica honesta, inclusive no sentido de ser a melhor possível no contexto em que foi escrita? Em outras palavras, é o que eu consigo fazer agora?
Trago tudo isso por causa de uma dúvida recente, que se achega desde que comecei as análises acerca da atual releitura de Renascer. Para quem acompanha este (intro)metido a autor, não é novidade que Renascer (1993) foi meu objeto de tese; e não tenho dúvidas de que há crítica em minha pesquisa, uma vez que ela é ferramenta fundamental à Academia — sem a crise (que gera um problema de pesquisa e uma hipótese) não existiria o trabalho científico. O título de minha tese, Renascer: narrativa cordial e estilo maneirista na telenovela brasileira, explicita a dupla descoberta de uma narrativa nostálgica pelo homem cordial e de um estilo maneirista, autorizado pela empresa àquele que era tido como diretor-autor, para exibir a modernidade atrelada ao Padrão Globo de Qualidade.
Seis anos depois do depósito e defesa dessa tese, volto a escrever sobre esta Renascer que é outra (renascida da primeira), mas que, inevitavelmente, me cutuca memórias e sentimentos. Há, porém, uma diferença fundamental: não faço agora um trabalho acadêmico (ainda que seja impossível me desvincular de certos academicismos), mas um trabalho que tenta pontuar textualmente esse (per)seguir diário de uma telenovela.
Nesse contexto, preciso reiterar minha compreensão de crítica, exposta aqui e acolá, em textos na Pós-créditos: entendo a crítica como uma outra obra que, embora nasça consciente de que estará sempre atrás de uma obra primeira, tenta se equiparar à original através da literatura, essa “trapaça com a língua”, “revolução permanente da linguagem”, como nos diz Roland Barthes. Entendo, portanto, a crítica como um gênero poético, que pode extravasar da literatura a outras formas, mas que mantém o objetivo de prolongar uma outra obra (como diz Bazin), que, por sua vez, será destinatária dessa derivação que é o texto crítico (o texto como carta à obra, como diz Daney).
Trago tudo isso porque tenho me perguntado se o que realizo sobre a novela, tanto por escrito quanto em vídeo, permanece crítica. Começando de trás para frente, os vídeos me parecem mais próximos ao trabalho que faço em sala de aula do que ao que acredito como crítica propriamente dita; ou seja, há crítica implícita, mas o todo é outra coisa. Já sobre o exercício textual, sinto que, embora atenda um certo caráter do cotidiano, que é interessante à crítica, ele se desenvolve em tópicos, sem uma coesão que concatene esse traço poético/literário. Nesse sentido, acabo retornando a uma ideia que me tem sido muito cara — a ideia da lasca imagética, como se o fragmento fílmico — inevitável na sala de aula, como nos dizem Jacques Aumont e Alain Bergala — se infiltrasse nessa produção escrita. Para o bem e para o mal, já que, se por um lado, impede que esse conjunto de parágrafos alinhave uma unidade textual, por outro, é o possível dentro de uma rotina em que a crítica — se é que a faço — é uma atividade sobrevivente, teimosa, que não põe o pão na mesa (ao menos, não na minha).
Talvez por tudo isso, a mensagem de um dos atores, dia desses, tenha me comovido tanto — “tua escrita é cinema e poesia”. Para além da generosidade, acho que me tocou esse fato quase isolado de perceber a escrita sobrevivendo, ecoando, quando a existência da crítica costuma ser notada apenas em casos pontuais; normalmente, quando desagrada fãs (convertidos a haters de críticos) ou quando traz à tona a complexidade de assuntos que a indústria e o jornalismo cultural tendem a planificar (ambos casos sintomáticos de um audiovisual reduzido ao entretenimento servil). Mas o que me deixou reflexivo foi a palavra poesia, do grego poíesis, fabricação, composição, criação. Pois se a ideia de poesia certamente atende ao meu querer crítico, questiono se, nesse caso, tenho a realizado de fato (ou mesmo em lampejos). Toda essa digressão desemboca num problema (de pesquisa?): não seria essa escrita, lascada e truncada, fruto de uma paixão irregulada, que se permite extravasar agora, liberta da chancela acadêmica? Pois se continuo certo de que minha tese embasa uma reflexão científica em crises que apontam a complexidade e as contradições textuais e contextuais da Renascer de 1993, me pego, agora, noutro tipo de crise, quando tento aplicar a equação de Douchet sobre o que esboço sobre a atual novela das nove.
Escrevo tudo isso porque esta escrita cotidiana sobre Renascer é, de longe, minha (não) crítica com maior repercussão nesses 10 anos de Pós-créditos (curiosamente, só recebeu atenção parecida um texto sobre outra novela, Amor de Mãe). Escrevo, portanto, sob a crise de uma questão cuja resposta pode demorar (assim como demorei anos para me assumir crítico). Nesse sentido, essa exposição da crise pode ser terapêutica, mas é, principalmente, uma advertência aos leitores que têm acompanhado os textos/stories no Instagram da revista: é possível que este retorno a Renascer tenha lampejos mais ou menos efusivos de lucidez, mas é também muito provável que venha desequilibrado, desimpedido na paixão por uma obra que me (co)move há doze anos. Escrevo, portanto, para “prestar contas” ao leitor e para dizer que, Douchet que me perdoe, mas, desta vez, a equação está injusta, muito injusta. Injustíssima.